segunda-feira, 5 de outubro de 2020

6. Zé Vaqueiro, Cuscuz e eu

 


 

Zé Vaqueiro, o mito, esse cuja história, como vaqueiro dos antigos, o povo de Candiba conhece. Ainda que vagamente, porque o parque de Vaquejada local presta uma homenagem a ele. A profissão que exercia, comparando com os padrões atuais, de época e de profissão, pondo o ruralismo de lado e numa linguagem moderna, foi a de um freelancer, no estilo “carreira solo”.  Muito conhecido como profissional de confiança, de levar o rebanho de gado para distantes terras. Ele era um negro com uma taca de cavalo na mão, respeitado pelos serviços prestados, relevantes serviços, que andava encurvado pela idade avançada, sinal de haver carregado esse jeito com manejo profissional da mesura a contratantes e traquinagem nos ócios do ofício, se é que assim se pode dizer de alguém num fim de carreira, naquele início dos anos 60, que se afirmava como uma nova era. 

Pois bem, ele deixou como filha a professora Maria de Zé Vaqueiro. Mas não é dela que quero falar não. Quero falar é dele mesmo, como o conheci: um negro com essa taca de cavalo na mão, que faço questão de dizer, porque ele acabou usando-a sem nenhuma responsabilidade em uma criança que brincava comigo, igualmente negra, como ele, inclusive. E era de      bater em cavalo.       

Que fazia essa criança? Nada que nos padrões da época justificasse a taca. Porque lhe pedia uma banana igual a que ele me dera e não uma banana preta de tão madura. Cuscuz era uma criança mais espertinha que eu, mais crescida e mais velha, porém um negrinho que chegava a lustrar no sol, e, como suasse, adveio-lhe daí o apelido, sem maldade, de Cuscuz. Havíamos ajudado a tocar umas reses para um quintal por perto. Então ele quis nos presentear com umas bananas, que ele guardava de monte de cachos num quartinho do oitão da casa, num fim de rua da usina de algodão então no auge.

Ele me entregou umas duas bananas bonitas, amarelas com alguns pontinhos pretos, e voltou para apanhar umas para Josa, Josenilson, meu primo (tia Zeni criava) quando só se ouviu um grito de quem ralha com brabeza:

- Menino, essa daí não, gritou e desceu bruscamente a taca de cavalo no garotinho.  - A sua era essa, não tá vendo! – gritava, nervoso, entregando-lhe umas duas bananas pretas de tão maduras que estavam.

Imagine como me senti, assistindo a aplicação da lei de dois pesos e duas medidas, que muito ia vivenciar vida afora, naquela taca de cavalo desferida como corretivo numa criança.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

A machadinha



 Para Dr. Robério Alves Neves

 Início do segundo ano primário. Aglomerado de alunos no corredor de acesso à sala de aula, naquela manhã de 1970. Um menino, chorando que fazia um horror, sendo arrastado pelo braço da mãe me chamou logo atenção.  Causou-me estranheza, na verdade. Fiquei meio envergonhado por ele.

- Oxi, como é que chora se está indo para escola?! pensei dentro de meus sete anos de idade. Mas ao tempo que me achei assim com minha responsabilidadezinha me achei também com certa inveja: - Ué! E podia chorar assim! Menino maluco! fotografei dele essa imagem, com os detalhes da mãe  arrastando o moleque de cabelo loirinho pelo braço, que dava seu showzinho logo cedo.

E esse menino loirinho iria para minha turma. Com quem fui pegando um pouco de rusticidade ao longo dos estudos que desenvolveríamos pela frente.  Em andar pelas ruas, jogar biroscas, pegar luta, tomar banho nas barragens escondido dos pais e saber manejar o estilingue (pelo que nunca fui de tomar gosto). Escondido dos pais! Descobri que os pais dele eram velhos. Pudera! Aí  era fácil de driblar. Não eram como os meus.

Tomando banho num fim de tarde, um vento batendo solitário, longe de casa, mas preocupado, e alguém falava:

- Olhe sua mãe aí, cara.

Você pensando em brincadeira de menino, quando menos se esperava era sua mãe mesmo, com uma sandália na mão aproximando para pegar para bater. E você ia lá imaginar que sua mãe estava ali no meio do mato?

Quanto à maluquice, que parecia ser o charme dele, tirava isso para lá. Depois a gente foi aos poucos se conhecendo a ponto de estudarmos juntos para a prova de admissão, num só livro, à luz de candeeiro que amanhecera numa cadeira perto da cama. Esforço infantil que resultou contemplado com nota cinco para ambos e com advertência do diretor do ginásio, nosso vizinho:

_ Vocês passaram, você e Rock, mas me prometam não fazer a prova final da escola.

Ninguém iria lembrar daquela professora chata. Esse é o termo: chata. Nessa ocasião, minha briga particular passou a ser com Rock, ele tirara nota 5,0 e eu 5,2. Era ligeiramente melhor.

- Quem é Orlando Prado Martins?

Antes que a gente pensasse nalgum possível mal feito de Orlando, o diretor completou:

- Diga a ele que meus parabéns! Primeiro lugar: 8,5.

Mais um na incipiente turminha de ginásio, que formaríamos a partir dali, do primeiro ano ginasial, ao lado de Paulo de Nonô, o cara (ficou com esse apelido porque brigava  fácil  e como um não podia falar o nome do outro...).

Mas, no segundo ano, tivemos uns cadernos tipo brochura, de capa mole, com detalhes de atletas de Olimpíadas comprados na venda de Possidônio. Bonzinho para escrever. Então comprei uns dois na conta de pai. Num gesto de imitação de menino, ele resolveu levar um também, aproveitando a presença do pai, que acabou enfiando a mão no bolso e pagando os caderninhos. Foi quando observei que o pai dele, ao contrário do meu, era velho, mais relapso, por isso que ele vivia mais solto.

Mércia, filha de um homem rico, era nossa namoradinha. Nossa não. O máximo que aconteceu foi de eu passar a mão pelo cabelo arrumado dela. Mércia era namorada dele. Minha irmãzinha tinha dito qualquer coisa sobre ela preferir Rock. Oxi, não sabia Mércia que ele era maluco e andava com estilingue no pescoço! ‘Descobri que Mércia era maluca também, filha de um negociante raparigueiro que deixava a garota nas casas de conhecidos da cidade e a apanhava num opala verde no fim de tarde, depois de haver aprontado em bebedeiras nos bares em dia de feira.

Na casa de Rock tinha um sofá em que ele guardava as suas revistinhas de zorro a pato Donald.

- Cuidado!

A gente desencostava do sofá perguntando:

- Com quê?

E ele:

- Cuidado com a machadinha!

Eu sempre procurava descobrir que porra de machadinha era essa. E ele “cuidado com a machadinha”, ia passando e dizendo “cuidado com a machadinha”, que até hoje tenho essa sede de saber.

Já no início da adolescência, na turma da sétima série, descobrimos que Rock era pisciano, o que explicava mais ou menos a sua maluquice, quando, numa confusão de sala de aula, o professor, não habituado a resiliências, mormente com adolescentes, um dia apertava nossa turma:

- Faça o seguinte: ou aparece quem cuspiu no caderno do colega Rock ou todo mundo vai levar suspensão por três dias

O professor de inglês, além de pastor da Igreja local, era do Sul, de costumes e linguagem diferentes, meio xarope, considerava-se, e não ia voltar atrás.

Rock, numa confusão de meninos, de sacanagem, se queixara: “alguém cuspiu em meu caderno, professor! ”

O professor bem que tentou resolver, dando uma chance, mas quem é que queria se queimar perante a classe, para o professor se sair numa boa?

- Se não revelar o nome de quem cuspiu no caderno do colega Rock a turma toda entra em suspensão por três dias.

Estimulava a delação. Eu podia ser tudo, menos idiota de dizer “sou eu professor, livre a turma disso”, e Rock, com cara de “se arrependimento matasse”...

- O professor, acho que foi um passarinho desses que cagou na folha do caderno, deixe isso pra lá, disse olhando para o teto da sala, onde havia pardais.

Mas o professor não era da região, tinha outros costumes, então a turma B da sétima série ginasial de 1975 provou sua solidariedade ao colega e tomou uma suspensão de três dias.

Nessa ocasião, completaria meus catorze anos e, para o ano, iria estudar em Salvador, levando comigo o carinho desse gesto de apoio da minha turminha ginasial mas eu queria mesmo era saber da machadinha do sofá da casa de Rock.

 

  

domingo, 27 de setembro de 2020

o fuso

 

A cena seguia um ritual simples mas um ritual. Antes de ir para o seu quarto, ela se erguia do sofá com os apetrechos de fiar no colo, algodão, novelos de linha e um instrumento, que hoje minha mãe guarda consigo, como uma cara lembrança: o fuso, que ela, vovozinha, sabia manejar com peculiar destreza. E dele fazer maravilha , essa maravilha  que  me envolve seguro de mim desde tenra infância: “meu cobertor que vovozinha fiou nas noites de espera”.

Interessante é que fazia uso desse cobertor tanto no frio como no calor. Tornara-se um vício: sentir o cobertor, ao menos uma ponta do algodão, com o cheiro de bem lavado que sempre o acompanhava e a gente associava a guarda-roupa da casa de vovó.

Inseparáveis. Éramos eu e o cobertor. Quando chegava o frio era só colocar o cobertor novo por cima. Aconchegante. Dormia aquecido por vovó, carinho que não costumava receber de forma exposta em vida mas recebia agora, após. Carinho tardio mas um carinho afinal. Que importa o tempo! Me pegou adulto e eu valorizo ainda mais porque é o instinto maternal estendendo-se adiante seu abraço de avó. Em reconhecimento é que por vezes, em noites boêmias, até tive que carregar comigo para um hotel e onde quer que fosse a noitada afora. Era uma criança graúda que sentia guarnecida e com toda proteção num sono de despreocupado. Nesses panos de riscado de vovó encontrei minha fidelidade. Uma traição me cobrir com cobertor de cheiro e textura diferentes, que não o riscado esbranquiçado de tantas águas e sabão de bola como devia ser:

“Esse cobertor seu pode lavar na máquina!”  era a mulher dando um trato novo  de manuseio no algodão, para não se descuidar da originalidade.

Contemplo  demoradamente o fuso, aparelhozinho tipo bobina de madeira que em mãos hábeis se tornou responsável por minhas noites de conforto maternal, de um bebê que ainda busca dormir como antigamente, em que se rezava antes e após tomar a benção de vovó.

Mãe, na qualidade de filha mais velha, ficou com o fuso e os novelos linha de algodão deixados por vovó: “Ei, olhe aqui! ” me mostrava como novidade umas bolas de lã. “Tem uma mulher que ainda faz o tecido. Vou encomendar mais uns dois cobertores de riscado.”

Era a presença de vovó na família. 

“Uma mulher forte!”  pensei com um frio sob controle do riscado tecido por vovó, examinando minha garganta antes de adormecer e apagando o candeeiro em seguida, num tempo em que se recolhia sem que de pandemia se ouvisse falar.

 

 


terça-feira, 22 de setembro de 2020

Aquela destreza (I)

  

Se alguém me perguntasse como estava dizia que estava bem, como resposta normal a esse tipo de pergunta, maneira fácil de encobrir um problema. A verdade, porém, é que, grosso modo, a considerar meu caso de per si, não podia estar a dizer-me normal. Também não podia dar-me como meio morto, como forma de queimar esperança e ter que gastar maior tempo com explicações de natureza espiritual ou científica. Porque, afinal, sem querer agarrar-me a ideia de entrincheirar-me como vítima digno de pena e permanecer nessa minha morte acabou, segundo alguns mais próximos, por ser-me, ao contrário,  um presente. Certo privilegio de espírito?

Onde estava a minha destreza para as coisas? Meu ímpeto, meu rompante, minha indignação? Meu jeito de cavalo solto, num levanta e sai, pronto para qualquer parada? Como se tivesse que começar a escrever mas com a mão esquerda mal acostumada. Na verdade, tudo estava em contramão, enviesado, de meio dia para a tarde.

Os dedos, quanta importância dos dedos para mim, exímio datilógrafo, para o gasto, agora na doce suavidade de um teclado. O som tirado de um violão descolado, sempre comigo. Os dedos bonitos já não obedeciam com presteza a ordem do cérebro. Na ânsia de ver de pronto o texto, como se distribuía antigamente, por anos, saindo agora de jeito truncado. Aí tinha que reiniciar (verbo muito em uso) e tome-lhe interrupção que irritava quem estava acostumado com aquela perfeição de texto. De vez em quando, vociferava com razão:

- Vou ter que começar de novo com o asdfg, asdfg, asdfg, é?

Inventei de manuscrever e descobri que não sabia, desaprendera completamente. Outro o estilo, que não tinha paciência de colocar em prática. Era no antigo, insistia,  e aí errava, atrasava, acabava  interrompendo,  teclando uma espécie de “pause”.

- Dr. Luiz e esposa, seus primos, vieram para uma visita.

Fazer o quê? Tinha agora que desempenhar o papel de enfermo que recebe visitas. Ficamos um bom tempo até que talvez por meu comportamento incompatível com a de um enfermo tivesse levado o casal forçosamente a se despedir cedo.

- Estou frequentando umas sessões de fisioterapia, por ora.          

Aí falou-se muito da importância desse ramo da medicina, ao cabo do que  ficaram pescando coisas no ar, até que resolvi me  abrir:

- Desculpe, mas eu não sei fazer esse papel de doente não. Não levo jeito.        Só faltei dizer “ô mulher, me acode aqui!”

Após agradecimento de praxe pela visita, dirigi-me à esposa, sempre na cola para as emergências e “panos quentes”:

- Agora fale que estou proibido de receber visitas. Não sei fazer esse papel.

- Bicho do mato! fui chamado pela mulher, que se irritara com o comportamento do doente.  – Você devia era dar graças a Deus. Mal-agradecido! completava finalmente a companheira.

- Veja se para com essa ideia de falar que está morto, Deus castiga.

- Prefiro a primeira, que eu devia dar graças a Deus, porque se quer uma explicação para minha morte eu lhe dou agora. Na vida a gente tem que se preocupar com a saúde física, mental e espiritual, as três, não é?  Bem, aí a seguinte ponderação: sou de longevidade, considerando o grupo familiar pelos dois lados. Portanto tenho maior probabilidade de desencarnar em idade avançada, sem ter que pagar, espero, por faltas em vida passada mas por abusos no exercício de meu livre arbítrio, que foi o período de extravagância com uso do álcool, considerado suicídio, de forma que o AVC me deixou assim meio torto para o resto de vida. Porque, segundo Kardec, em seu livro de minha cabeceira, A GÊNESE, “As doenças, as enfermidades, a morte, que daí podem resultar, provêm da sua imprevidência, não de Deus”.

- Não sinto mais o paladar cem por cento, prosseguia eu: não consigo correr, com arrancada, nem me levantar do chão sem uma mão de apoio, concluía meu chororô.

- Lembrei que outro dia caí fazendo caminhada no entorno da Lagoa do Mocambo. Bom que uma moça, que vinha passando, me deu a mão. Mas  outro dia, cinco horas da manhã, me apertei e aproveitei que ainda estava escuro e, seguro no poste, fiz na rua perto de um terreno baldio. Que tristeza ficar olhando, procurando um canto. De oura feita, quis me virar para reerguer, com dificuldade tamanha, escondido num resto de construção do largo da lagoa, em tempo de ser flagrado. A partir desse fato mudei de atividade física para passeio de bicicleta em vez de caminhada e fico enxergando todos com a estampada ideia de fim de mundo no rosto.

- Fim de mundo?! Então você me vê velha, não gosta mais de mim. É isso, estou feia. Vá procurar outra.

- Não. Calma. Não é bem assim. Você tem efeito contrário: te vejo ainda menina. É com relação as outras pessoas: “Quem já foi Naninha?” é assim que olho e logo me pergunto dentro de mim. Tia Mena, olhei pra ela outro dia, ela sorrindo, e eu sofrendo dentro de mim.       

 - Por quê?

- Está ficando velha, eu vi a velhice em ação, se acentuando nela... Ia dizer “é uma pena”, mas é a vida. Temos que conviver com essa fase e encontrar outros confortos. Já você, você é uma coisa minha que eu vejo da forma que eu quero, entende? Inseparável. Una. Meu ego prevalece sobre qualquer outro entendimento. Inda te vejo de uniforme bem engomado, chupando um picolé de groselha, a caminho do portão do colégio, num início de tarde. Impregnada de primavera. Mas e os outros? abrem-se as cortinas para tanta luz de realidade que dá para você apanhar um cisco no chão, uma agulha no palheiro. Compreendeu?

Ela pareceu engolir em seco:

- Mas você não pode ter esse comportamento...

- Meu comportamento pode parecer estranho, mas não de um acabrunhado. Compreendeu? Quero o equilíbrio espiritual, respeito e cuidado com o corpo físico, que eu não tinha. Longe de mim acompanhar essa sombra. Devemos procurar cumprir essa nossa vida buscando a luz. O que eu quero dizer é que com essa minha conduta, me declaro ciente de minha conduta anterior. Meu princípio vital sofreu um abalo. Daí essa minha visão. A começar, essa destreza que já não tenho nos dedos da mão, encerrei fazendo movimento com os dedos.

 


domingo, 23 de agosto de 2020

       Fecho éclair

 

1.

Duas horas da manhã de vinte e três de agosto do ano da pandemia de dois mil e vinte.

Momento roubado para um nescafé

de cômodo preparo;

as coisas do mundo acontecendo lá fora,

a imensa roda do implacável

vencendo montanhas, edifícios e cidades

sem se importar com nada;

o potente automóvel dragando distâncias,

parecendo parado imponente na estrada;

o nível do mar subindo na janela do teu quarto

indo para o telhado;

o antes e o depois se encontrando em cumprimentos

e a minha certeza pichada nos muros que estive aqui,

ali,

além

de tudo e de todos,

ou a gente se acha por aí.

2.

Como tu, nada sei dos outros ou de mim.

Mergulho assim mesmo

com olhos de desconfiança

que fazem parte, à parte,

nesse caminho longo, sem fim

que se vai abrindo, abrindo...

Psiu que há gente dormindo

gente de todo jeito

gente in extreminis

gente se desgrudando das coisas

tal como fecho éclair

estilo carrapicho.

 

3.

Os  segredos, aqueles!

que guardavas contigo no teu âmago

agora transbordantes espalhados

da Lagoa do Mocambo ao Dique do Itororó

produtos com data de validade vencida.

 

4.

Nem dava para sair gritando eu te amo eu te amo   

porque o amor já se fizera  de per si, ao seu modo,

e tu não ias voltar toda fita de gravação para ver como se dera o amor,

qual o segredo que restava ainda por contar

no mais fundo de ti

aberto ao peito sem o saber.

 

5.

Arco íris enfaixado nos céus,

bandeirolas de S. João com arranjos de Natal,

e gol gritado ao infinito: gooooooooooooooooooooool

discreto fruto maduro num galho

que se descobre alheio no quintal.

 

6.

Não mais se interroga

mas se descreve, se exclama sim

e dão umas reticências

como se fosse um “corras “

do jogo de biroscas na infância.

 

7.

E não espera o fim estilo The and

dos filmes de sessão da tarde,

porque vais receber um bom dia

dos pássaros que te visitavam pela manhã

e tu não respondias,

 

8.

das fores que enfeitam agora seu campo visual

e  tu ignoravas (ah... as flores...)

ao som de uma sinfonia

que tu não percebias como agora,

como Marta, irmã de  Lázaro e de Maria.

 

 

 

 

                                                    

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O novo professor de Português

 


 

               

 

 

                                                                                                          Elzeni Cunegundes Nunes Jorge

 

Teríamos um novo professor de Português na escola. Meio de semestre, houve uma mudança repentina pelo fato de o anterior ter-se mudando de cidade. Era missionário, foi enviado pela igreja a outra região. O novato seria um advogado, filho de um influente político da cidade, mas se formara na capital e havia retornado à cidade há pouco. Jovem ainda, pelas informações que me passaram. Eu não o conhecia. Seria um engomadinho com linguagem empolada, metido a intelectual, logo pensei, revirando os olhos. Não me fazia muita diferença, visto que o anterior também era meu antagonista. Explico. Não nos dávamos bem por vários motivos, e o primeiro era o fato de ele manter o hábito horroroso de assediar as alunas. Fazia vistas grossas nos erros das provas em troca de um sorriso meigo, uma carícia nas mãos... como era uma adolescente “nariz empinado”, nunca cedi. Isso afetava meus brios, primeiro porque Língua Portuguesa sempre foi minha matéria preferida. Redação era meu forte, até ganhei uma medalha de bronze (e não ouro, que afronta!) num concurso de redação oferecido pelo colégio uns dois ou três anos antes. Segundo porque era nojenta essa conduta. Ainda que fosse outra matéria (Matemática, meu fraco), eu jamais cederia, não fazia parte dos meus princípios. Lembro-me de uma vez em que ele aplicou uma prova com todas as questões objetivas e eu gabaritei. Valia 10 e ele me deu 8. Fui questionar, ele não levou a sério. Tentei de todas as formas requerer minha nota por direito, mas não recebi apoio. Procurar a secretaria seria a solução, se eu contasse com um suporte e informação suficientes, mas meus pais nunca se interessaram em se envolver com nossa vida escolar, mantendo o costume arcaico, de quando os professores eram autoridades máximas e o aluno tinha que ser subalterno em todas as circunstâncias. Anos 90, ninguém se importava muito com defesa de direitos. Resultado, fecharia o ano com 38 pontos totais em Língua Portuguesa, quando o total eram 40 pontos e, para “passar direto” (sem precisar fazer prova de recuperação), eram necessários apenas 28 pontos. Quando eu ia reclamar com alguém, já ouvia a frase: “Mas para que você quer tantos pontos?”. Para efeito de vaidade, ora bolas! Eu sempre me jactanciei por fazer 40 pontos praticamente todo ano em Língua Portuguesa. Era esplêndido ouvir a sequência de admiração das pessoas: “nossa, como você consegue?”; “ai, que inveja!”; “me empresta um pouco da sua inteligência!”. Os mais despeitados diziam: “Não sei pra que você quer 40 pontos, se 28 são suficientes para passar”. Sentia-me o máximo!

                Sexta-feira, terceiro horário, ele entrou tranquilamente na sala. Alguns alunos estavam ansiosos, outros curiosos, outros indiferentes. Eu não me encaixava em nenhum desses grupos, apenas falava comigo mesma: “O senhor vai ter o resto do ano letivo para conquistar minha confiança”. Não quis emitir minha primeira impressão, mas a verdade é que eu fui com a cara dele logo à primeira vista. Mas não iria demonstrar tão cedo, muitas águas ainda deveriam rolar. Após a apresentação inicial, que foi bem sucinta, asseverou:

                __ Tarefa de sondagem, antes de darmos continuidade à matéria de Português. Cada um de vocês vai me produzir um texto, tema e estilo livre.

                Ouviu-se um levantar uníssono de protestos, uma miscelânea de vozes e reclamações acerca de “ser pego de surpresa”, “não ser bom em redação” (nunca entendi por que 90% das pessoas carregam esse conceito desde os primórdios da vida escolar), “não sei por que não começa logo com a matéria” e por aí afora. Eu permaneci quieta à espera de mais esclarecimentos sobre a tal tarefa de sondagem, mas minha massa cinzenta já começava a elaborar a sinopse do conteúdo.

                __ Lápis e papel na mão – ele continuou sorridente.  – Vocês têm a aula toda para produzir esse texto, pode ser dissertativo, narração, descrição... podem usar a imaginação à vontade, tá? Vamos lá!

                As contestações foram minguando, os mais espertos já se colocaram a postos para a escrita, os mais relaxados ainda foram abrir suas mochilas e procurar os cadernos. Eu já estava com caderno e caneta em mãos desde a entrada do novo professor. Fechei os olhos por alguns minutos e pensei: “vou narrar um conto, em primeira pessoa, com narrador personagem”.

 

                Caminhava apressadamente por entre as vielas escuras da mata densa. Era noite sem lua e o céu ainda estava bastante nublado. A respiração estava ofegante, acelerei ainda mais os passos ao perceber que alguém me seguia. Senti as pernas tremeram, onde encontraria socorro? Quanto mais eu andava, mais a estradinha se estendia à minha frente. Para onde eu estava indo mesmo? Para casa?

                Parei um pouco para ter certeza de que meu subconsciente não estava me pregando peças, fazendo-me delirar. Vi um vulto e desesperei. Gritei, mas mesmo diante da aproximação do perigo, minha voz não saiu. As pernas estavam cada vez mais pesadas, e minha solução imediata era procurar me camuflar por entre as árvores, auxiliada pela opacidade noturna. Quem estaria me perseguindo? E sob qual justificativa? Senti um líquido grosso e morno escorrer pelo antebraço, mas mesmo sem conseguir visualizar, impedida pelas trevas, sabia que era sangue. Precisava encontrar um abrigo, mas onde?

                Um pássaro estranho e grande voou baixo, atravessando meu caminho. Recuei por instinto, mas sabia que meu algoz estava cada vez mais próximo. Parece que todas as bestas da mata se uniram para assistir minha desventura, visto que dos dois lados do caminho, por entre árvores e arbustos, dezenas de pares de olhos brilhavam na escuridão, mas estranhamente tornavam o cenário ainda mais escuro. Além de assustador, claro.

                Senti vontade de chorar, mas as lágrimas insistiam em não vir. Os pés descalços farfalhavam sobre as folhas ressequidas, ferindo-se constantemente nos espinhos e arbustos, mas a dor me era quase imperceptível. Sentia, também, um frio quase insuportável. E nesse cenário estarrecedor, deparei-me com a presença abrupta da velha Júlia, nossa antiga vizinha. Ela agitava os braços freneticamente e falava um amontoado de palavras que eu não compreendia. Mas ela não havia falecido há anos? Céus, será que morri e não percebi? Não, eu estava vivíssima, podia comprovar isso pelo frio intenso sobre a pele mal coberta pelo vestidinho de viscose, o ardor no corte recém-adquirido no antebraço, decerto pelo atrito nos galhos de alguma árvore espinhenta, e a respiração ofegante, simultânea ao aceleramento cardíaco.

                Não consegui entender as palavras da velha senhora, que acabou ficando para trás, mas logo percebi que se tratava de um aviso: logo à frente estava um abismo ainda mais escuro que a negritude que me envolvia. Gritei, mas minha voz não saía. Não poderia retroceder, meu algoz estava a poucos metros de me alcançar. Desconhecia aquele lugar e não entendia como havia ido parar ali. De repente senti algo me puxando para dentro do abismo, gritei novamente e dessa vez o som do meu grito irrompeu por todo o ambiente, produzindo ondas quase insuportáveis de vibração nos meus tímpanos. Fechei os olhos, a morte parecia inevitável.

                Num piscar de olhos tudo mudou. Abri os olhos e me deparei com o teto do meu quarto, precariamente iluminado pelos raios da lua cheia que penetravam entre os vãos da persiana. O grito ainda ecoava no silêncio do quarto.

 

                Minha tarefa de sondagem estava pronta. Revisei apressadamente a ortografia, passei o texto a limpo e coloquei o nome e a identificação da turma no final da página, fiquei sem saber como criar um título, então deixei sem. A sirene tocou, indicando o final da aula. Entreguei a folha diretamente nas mãos do professor, que seguiu para outra turma. O danado saiu ileso do primeiro dia de aula, sem trabalho nenhum. Mas eu gostei da estratégia dele.

                Passado do fim de semana, retornamos às aulas. Não estava ansiosa acerca da avaliação das atividades, na verdade nem me lembrava mais dela. O horário da aula de Português naquela segunda-feira era o último. O professor iniciou a aula devolvendo a atividade corrigida. No meu texto não havia nenhuma marcação em vermelho, como de costume. Na primeira linha que deixei vaga ele acrescentou em tinta preta, com letra de médico, um título: “Pesadelo”. Achei meio pobre e “lugar comum”, mas não reclamaria jamais. Seria falta de ética e até de educação.

                Após a entrega de todas as atividades ele iniciou seu discurso de avaliação geral do desempenho da turma.

                __ Desculpando-me a sinceridade, vocês estão péssimos em matéria de produção de texto.

                Feriu-me tais palavras. Tudo bem que não havia feito grande esforço para produzir meu conto, mas merecia um pouquinho de consideração ao menos pela ausência de erros gramaticais. Não iria contestar, não queria deixar a marca de aluna rebelde nesses primeiros momentos. Ele continuou seu sermão:

                __ Vejo que dois podem ter sido os motivos desse desempenho tão negativo. O primeiro certamente é a falta de interesse da parte de cada um, e o segundo a ausência de conteúdo literário. O brasileiro lê pouco, vocês estão seguindo essa estatística. Com isso já pude entender que precisamos trabalhar muita leitura e produção de texto no decorrer das nossas atividades.

                A turma continuava em silêncio, mas ninguém reclamou. Afinal, todos estavam convencidos de que ele tinha razão. Eu não via interesse por parte de nenhum dos demais em ser bem sucedido na matéria de redação. Senti-me um pássaro raro, uma ambiciosa. Antes que o desânimo me abatesse, ouvi uma ressalva:

                __ A bem da verdade, só há um texto em toda a turma que salvou todos vocês do fiasco. Texto muito bem produzido, linguagem clara e total ausência de desvios gramaticais – olhando na sua agenda, completou. – O texto de uma tal de...

                Ouvi meu nome, não com surpresa, mas com satisfação. Meu ego inflou-se. E como era de costume, ouviu-se um ressoar de “Ah, pra mim não é surpresa”, “Ficaria surpresa é se o dela também fosse péssimo” e “Já sabia que estava faltando alguma palavra acerca do texto dela”. E foi assim que o novo professor de Português conseguiu meu respeito e admiração, tornando-se no decorrer dos anos seguintes, um dos maiores incentivadores da minha doce tarefa de escrever.


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

 

Alumbramento

 

Fazia um tempão que, pé ante pé, ali se plantara, focado só nas coxas mal envolvidas nos lençóis, num proposital desleixo. Ela ferrada no sono leve, que, a um milímetro de vacilo, podia sair do esquadro e acabar com o filme, diga-se. Filme proibido para menores de 18 anos. Ele só tinha 14 e todo vigor juvenil de um cavalo solto riscando o chão com a pata. Solto, mas trêmulo, de passos contidos em rédea policiada e curta. Daí a instante era hora de ela emergir das sombras. Não ia cair numa fria. Agora seus olhos viam uma verdadeira maravilha, tinha que focar mais...mais... e mais...  de forma escorregadia no vão da porta mal encostada da alcova... ia vendo an passant..., em alumbramento, segredo revelando-se novidade em repartidas bandas, em vermelha e doce melancia, se possível a comparação.

 E ele no desbravamento do longínquo desconhecido, misto de proibido e pecado, em rasgo de luz por entre os toletes de coxas morenas desse enorme e quente segredo - o cós da calcinha meio entranhado no bumbum, que, fascinante, não se deixava ver por completo, devido aos intrusos lençóis, nos bruscos movimentos que ela, "inconsciente", fazia. 

Tudo isso com seu sistema de radar particular acionado, pena de ser apanhado no flagra. Zupt! Hora de sair. Afinal, cumprira mais um dia de aventurazinha no pós ciesta que ela gostava de tirar àquela hora, e corria para se descarregar no banheiro - o the end. De volta rápida para a mesa da sala, onde se posicionava fazendo o dever de casa, quando ela chegava com ar de descansada e sentava a um canto empunhando suas apostilas, cadernos e livros do 3º ano. Ia se inscrever em Filosofia; Medicina nem pensar. Ele ainda no ABC da vida que teria pela frente, concluindo o ginasial.

- Vai estudar essa apostila toda agora?

- Vou nada, não vou fazer Medicina não. Isso é para esse povo. Humanas e língua portuguesa, minha praia, respondeu com calma, separando dois módulos de interesse, e levantou-se em buscar de um café.

- Quer um?

Sinalizou que aceitava. Ficava apreciando-a no short folgadão, que lhe dava um tesão danado. Uma hora ia pegar aquela peça de vestuário como recordação. A calcinha, a do cós no rego,  essa não, dava cheiro na parada. Não podia.

No final, caprichando em humanas e literatura, só ela quem passaria no vestibular; o pessoal de medicina ia ter que procurar outro caminho. Ele ia começar o primeiro ano colegial.

E aquele alumbramento é que iria acompanhá-lo pelo resto da vida.