sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

O menino jacaré

 


O menino estava com a irmã mais velha admirando um brinquedo de outro menino, que posava seguro com um carrinho de madeira todo transado, cabine, carroceria, com paralamas e até lameiras (um brinco!), empurrado por um cabo de vassoura enroscado em parafuso num barbante, como algo de sonho inalcançável por gente modesta como ele.

          Como inalcançável? Tinha lá em casa também algo muito valioso, que fizera com inteligência e muito esmero. Era o que, de imediato, se podia dar em rolo numa empolgante comparação. E então o menino do carrinho rompeu, como um homem de negócios na feira, e ponderou na resposta: 

            - Depende. Em quê?

            - Numa casinha legal.

            - Pega lá para ver.

            Aí que estava: não podia, e o menino, que tinha se inclinado para um possível crédito ao seu posicionamento, voltara a ser o implacável negociante e ia negar, o que fez subir a luz de alerta do cúmulo da pretensão, que o forçou a dar uma explicação:

            - Não pode, fica lá no meu quintal... é bonitinha. Você não quer ir lá para a gente ver?

            - Não. Pensei que fosse de...  papelão, algo assim...

            Esse menino sonhador era eu, no meu primeiro negócio, o que principiava como uma amostra do que seria eu dali para frente, sempre em choque de realidades, vida afora, com pretensão desse tipo.

            Cheguei de volta em casa e me pus a apreciar a casinha feita com barro da água que caia da cisterna próxima, à sombra de um pé de manga, com uma estradinha feita com cerca de gravetos dos paus de lenha amontoada acolá, com o curral ao lado da casinha, cheio de gado de osso, com um pasto verdinho, nascido por igual do arroz em casca; lama, aguadas, e era um brinquedo em que se viajava pelo mundo o dia inteiro, com os carrinhos de plástico, enquanto permitia a luz ainda tênue do sol da manhã ou da tarde. O caminhãozinho do menino também era um encanto, mas era mais para passear pelas ruas e sua mãe proibia arredar-se do quintal.

          Fico a pensar desse gosto meu pelo singelo. Desde pequenas coisas a outras de maiores considerações.  Quando na adolescência tinha-se que escolher a namorada entre duas irmãs, eu fui preferir a segunda, menos em disputa... A mais velha, muito bonita (era demais), mandava recados para mim, e eu, em resposta, mandei combinar com a mais nova,  feiosa e que não fazia parte da história.

            Como, por exemplo, a história do cinto, mais emblemático, que comprei na venda de Iris de Possidônio, após muito tempo de paquera, tanto que pedi a minha mãe, que acabou me chamando para uma espécie de prestação de contas, para ver onde e como eu gastei o dinheiro, após gritar “deixe me ver esse cinto aqui, menino”:

           - Hum-hum-hum, cinto jacaré..., completou num muxoxo, e  até hoje não sei o que significa “jacaré”.

 

 

 

 

 

 

 

=

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

FESTA DE FORMATURA DO 5º. ANO PRIMÁRIO DA ESCOLA RURAL MISTA DE CANDIBA EM 1956 ALUNA: EUNIDES ALVES PEREIRA PROF. FRANCISCO PEREIRA DA SILVA

 

1.                          Nessa viagem com mãe, vou dar cobertura a formatura de quinto ano primário dela, Nidinha, Eunides Alves Pereira. O ponto de referência do roteiro é a sede da Escola Rural Mista em Candiba, município de Guanambi, Bahia, no final da ladeira da atual Rua Presidente Vargas, em novembro de 1956. Era ela uma adolescente de 16 anos, morena, dos escuros cabelos compridos, que desciam até a cintura, fina (58 centímetros), diga-se de passagem, e o sorriso de uma menina atenciosa com o mundo, botando apelidos grudentos nos irmãos, em brincadeiras, porque era assim que vivia naqueles anos cinqüenta, tal como uma ninfa florescendo juntamente com a Vila, para onde a família se mudara proveniente da Fazenda Barreirinho, e ali, na praça da Igreja, se estabelecera, com uma loja de tecidos ao lado da casa.

Um quadro convencional: o pai, Osvaldo Dantas, no balcão, quando não estava na roça, a mãe Etelvina, que o substituía por vezes,  cuidando das coisas e dos meninos lá para dentro. Adaptara-se bem com essa mudança, porque antes tivera como professora dona Dozinha (professora Theodosina Batista), com quem aprendera na roça as primeiras letras. Agora, na Vila, com o professor Francisco, com o quem o pai tivera uma conversa séria antes de proceder à sua matricula. Sobre como iria receber a menina e o que iria ensinar, assegurando o mestre que ela, em aperto, formaria no fim do ano com a turma da quinta série, e daí poderia seguir nos estudos em Caetité:

“Lá nós temos parentes, professor”, planejava Osvaldo Dantas, “é que agora, professor, sem terminar os estudos, não tenho ideia de casar filha minha não”, concluía com ar de preocupado.

Sempre em afinação com a didática do professor, que lhe socorria, Nidinha sonhava com influência do pai, que muito falava desses parentes que deixara em Caetité.

Candiba era aquela pracinha da Igreja, as casas em volta e a serra ao fundo como uma distante fortaleza, feito um abraço reservado para vida futura. O que podia esperar de um dia sempre igual era enxergar naquele vento que agitava a vegetação e sacudia os ares a novidades de uma nova era, que se erguia a partir dali, da Vila, como estreia da jovem Eunides Alves Pereira, futura companheira de Aleci da Silva Prado, que também se fez presente no evento. Afinal, já tinham eles um prévio conhecimento que sinalizava um promissor namoro. Com essas conjecturas, achava-se ela sentada com os colegas, no meio da turma, com sua saia de preguinhas azul marinho (a mãe teve que fazer às pressas, pois o pai não queria saia justa), blusa de um rosa claro, com mangas de três quarto, que se descobria decente. Para abrir os trabalhos, em solenidade, discursou o professor Francisco Pereira da Silva, grande aquisição do então distrito de Candiba, nova denominação do antigo Mocambo, a que ainda não se acostumara a população mais idosa. Depois, acompanhando a chamada por ordem alfabética, Nidinha ergueu-se, magrinha, arrumada, com os seus cabelos que lembravam a graúna alencariana e, empertidigada, caminhou até o professor para receber o diploma, sob aplauso geral e abraço do pai e da mãe, que, a um canto,  carregava uma neném de colo, sua irmãzinha Eneni.

Então já era o baile? Ao som da Safona de Jacob. Mas quem esteve dançando com todo brilho foi o jovem Aleci, que desistira da Escola do professor Francisco no segundo ano, num tempo remoto, e estava agora de volta de S. Paulo, com todo garbo que lhe competia como um soldado que andara servindo no Exército brasileiro, turma de 55. Só que, a considerar, tinha ele que estar dançando era com ela, Nidinha e não com sua colega Dolores, que, percebia, vinha assediando o jovem desde que voltara de S. Paulo.

“Ela já tem umas cabeças de gado. Uma ajuda boa, pra começo, não acha?”, segredava-lhe em pergunta o entusiasmado Benjamim, tio da moça Dolores.

Enquanto assediava-se de um a lado o jovem Aleci, um pesado clima parecia tombar sobre  Nidinha de outro, com as engendradas conversas de Dolores, para ela ir de companheira até as máquinas (usina de algodão) de Joaquim Marques e ver lá um moço loiro, bonito... de Minas... acrescentava como se fosse um prêmio de boa novidadeMais por companheirismo que por interesse, pois que aguardava Aleci, com quem mantinha um flerte (do conhecimento do seu pai, diante de quem se apresentou) acabou cedendo ao malfadado convite. Logo, para surpresa sua, o moço acabou se engraçando foi com ela, Nidinha, a ponto de, na sua apresentação, lhe estender em oferecimento uma maçã, que foi obrigado a aceitar, e, para completar a história, comer. Tudo isso como prato cheio, para contar a Aleci, que lhe fez despertar para uma atitude machista só refreada pela bronca que levou da mãe, dona Ana, quando com ela fora queixar-se:

 - Tome Vergonha, rapaz. Você tem que conversar é com Nidinha, que é moça para você se casar, não é com esse “pescoço de cágado” não, falou insinuando um sestro de superioridade que consigo carregava a moça.

Enquanto consolava saber agora da conversa de dona Ana com Aleci, que terminara por ele acreditar nela, já lhe consolara mais ainda as palavras recebidas de sua mãe Etelvina, quando o mundo para ela teve fim ao ser carregada do baile da casa de seus tios por seu pai, que notou sua ausência e alguém maldosamente lhe dera notícia sua no baile (ela dançava uma moda com João de Antonhezinha):

- Não chore não minha filha, que seu pai gosta de você. Ele quer o melhor.

E olhe que a mãe era considerada uma realista e quase fria de gestos, como esse de solidariedade a sua filha mais velha, chorosa.

Esperou e ele veio. Com todas as cores de seu sonho. E dançaram ao som da safona de Jacob, naquele dia de formatura de quinto ano primário, em que se considerava pronta para prosseguir nos estudos ou aceitar a proposta de Aleci, de conversa marcada com seu pai, sobre o casamento para o ano seguinte, pondo fim ao assédio da colega Dolores e de seus familiares.

 

 



domingo, 29 de novembro de 2020

As duas mortes de Sinhá Maria de Orlindo

 


Esclareço aqui uma ponta deixada solta em página anterior.  Um adendo. Acho que só eu e vovó Etelvina guardamos esse segredo: sinhá Maria de Orlindo experimentara a morte antes de morrer de vez. Ela caíra doente e estava moribunda. Morava na Rua Presidente Vargas, numa casa de boa fachada com comércio ao lado, de seu marido, seu Orlindo. Porque o comércio dela, Sinhá Maria de Orlindo, era dentro de casa, na sala, onde havia espaço para, além da venda bem sortida, um presépio (lapinha), muito visitado por sinal.

Ambos comerciantes, dos tradicionais na cidade de Candiba, eram figuras folclóricas. As coleguinhas, no Curso de Admissão, em 1971, subindo a Rua Presidente Vargas, passavam por lá e compravam bala doce. Mas oh que tristeza das meninas chupando as balas que sinhá Maria já havia desembrulhado, chupado e enrolado, de volta, no mesmo papel, pronto para venda, mania de velha voltando a ser criança.

Tome vergonha, Rock, deixe de mentira!” ralhava eu, envergonhado.

Podia ser mentira de Rock (torcia para isso), porque eu gostava de uma delas e não ia cair bem mesmo tal arte da velha, “eco”, pensei na hora. Mas ficou essa resenha e foi chato ver minha coleguinha abrir a bolsa e se desfazer de um pacote de balas.

O ambiente ficou nojento, até que na descida  da Escola apareceu para salvar a situação foi tia Lô, que falou da hipótese, que eu logo acolhi, de as balas se encontrarem umedecidas por conta do tempo chuvoso, que não eram por chupação de Sinhá Maria não, que era abuso da molecada mesmo, aproveitando-se da idosa.

 “Tome!” olhei para Rock, que inventara aquilo.

 Ela, nesse papo com vovó, queixava-se apontando quando por ali passavam as meninas, que eram “suas freguesas” mas que nunca mais. E falou também que tinha morrido e que estivera num lugar que parecia ser o céu, que lá existiam no local umas hortas de encher os olhos com plantação de alface, couve - o cotidiano que ela mantinha cá. Com a diferença, que era coisa de qualidade.

A gente comentava que ela relatava para vovó que tomava banho no quintal e depois molhava a horta com aproveitamento da água da bacia, que ficava uma maravilha ver as alfaces ao sol da tarde. Resultado: perdeu outra freguesa.

E como era um casal de velhos, independentes, cada um dono de si, com seu comércio, diziam as más línguas que ficava um torcendo para o outro morrer logo. E estranhamente, Sinhá Maria é que venceu a parada. Semanas depois, para nossa surpresa, enterramos seu Orlindo, que não estava programado. Numa segunda feira cedo, antes de irmos para Guanambi, conforme era costume da região, sepultamos seu Orlindo, com outra cova aberta do lado (prevenção).

O enterro de Sinhá Maria de Orlindo foi daí alguns dias quando ela acabou morrendo de vez (a segunda), que foi um chororô na Rua Presidente Vargas, enquanto o comércio de ambos e casa de morada eram disputados por herdeiros que chegavam, para início de uma nova era.

 

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

A Árvore de Natal de Dona Sinhá

 

 

Nunca foi de haver uma decoração lá em casa por certas ocasiões de festas populares. Lembro-me de uns três pauzinhos de madeira nova que o vaqueiro inventou de arrastar e encostar na frente de casa num São João desses, num tempo que lá vai fumaça. A lembrança é da pobreza que representavam os pauzinhos. Tanto que a gente teve que se socorrer de outras fogueiras cansadas, na vizinhança de rua. Tomamos “emprestado” um pau da fogueira de vovó, ao lado, um da fogueira robusta de Dona Virgulina, mais na frente, uns dois de outra fogueira meio esquecida acolá, e assim fizemos nossa fogueira de S. João, com alguns poucos fogos garantidos pela venda de Possidônio, que fornecia para a família.

 Mas no Natal, nunca tivemos igualmente a Alegria dos enfeites (a gente falava assim, "enfeites") pela casa adentro. Até que um dia, num piscar de olhos, num passe de mágica, como é próprio do espírito reinante então, encontrei uma bela árvore de Natal, com os arranjos de sinos pendurados  e verde em  papel crepon distribuídos de acordo. O encanto foi imenso porque amanhecera ali em casa, que nunca fora de combinar com esses caprichos mas compensava a gente com os presentes dados a cada um. Mas sem o conforto que oferecia o ambiente, como a lapinha de Dona Glória e a lapinha de siá Maria de Orlindo (que chegou a morrer duas vezes). Afora esse detalhe, era de uma maravilha sem tamanho. Você vai entrando na sala e dá de cara com o espetáculo duma árvore de Natal, que chega a suavizar-se de uma repentina calma interior.

Aqui dou um corte na prosa para recobrar minha manhã, quando a caminho da escola, passando pela casa de Dona Sinhá, a mãe de Tequinha, deparei-me com uma estupenda árvore de Natal, e falei com mãe:

- Igualzinha, mãe. Na casa de dona Sinhá tem uma igualzinha.

- Foi ela quem mandou entregar essa de presente pra você, meu filho.

Que tristeza a minha nessa hora! Tinha elogiado tanto a árvore de Natal, com alegria de menino, que Dona Sinhá, no seu jeito infantilizado de ver as coisas, resolveu me mandar de presente:

- Ela é assim mesmo, meu filho, tudo que tem em casa é dando para os outros. E a casa cheia de filhos...

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

9. Dominguinhos

 


- Duas de Manda Chuva e uma de Cavaleiro Negro num Almanaque Disney?! Trocou com quem?

Ninguém sabia. O que importava era o gibi ali na minha mão. Ia ser devorado lá para dentro. Primeiro, deixar pronto o dever de casa no alpendre, onde costumava, sub-reptício, receber amigos. Todo mundo sabia que o amigo seria expulso logo que algum adulto da casa - a mãe, a tia, a empregada - se aproximasse. Tal o clima de terror, que sempre perpassava uma imagem de suspeito de coisa errada, ainda que não fosse o caso:

- Moleque!

E de moleque só ficava o vulto - “pernas-pra-quê-te-quero”! Era numa dessas manhãs em que aparecia Dominguinhos. Chegava e do mesmo jeito saia. Com sua canhota, que se diziam certeira, e era verdade, como pude testemunhar por várias vezes.

Ele nunca fora de briga, mas por conta das injunções da época, era forçado a isso e levasse lá uma porrada dele para se vê. Chutava, era o nosso Rivelino no time de rua. Ponta esquerda, tinha o canhotaço. E acabou que ficou mesmo só o vulto de Dominguinhos. Desaparecera ao pressentir a aproximação de Luísa, uma tia que, por ser uma adolescente, não recebia o tratamento reverenciado como os demais, mas procurava se impor.

-  Esse moleque não estuda, não toma banho, que vocês querem com ele?

- Gibi emprestado, acudiu Louro, um colega vizinho com quem eu fazia as tarefas.

            Luísa fez um ruummm que indicava suspeita naquela manhã de sol tênue, mas a gente nem queria saber disso. No meio da molecada era um sucesso. Onde se achava revista de Tex que Orlando tanto adorava?

            - Essa novinha de TEX foi Dominguinho que me emprestou, dizia o próprio Orlando especando qualquer reação nossa.

            Ou por outra, alguém dizia:

            - Arranjei com Domingo, cara.

Reparando bem, Dominguinho vinha se firmando como novidade nesse lance de troca de revistinhas.

            - Domingo nem sabe ler! observava Luísa, mordaz, ligada no assunto.

            Tal era o costume entre a turma, que não tivéramos essa conclusão. Normalmente recebia e passava revistas, de um moleque para outro, com estalo indagador quando despertava interesse. Notava-se que aos poucos ia aparecendo nas conversas o nome do companheiro de brincadeira de rua, de outras modalidades, não nessa do círculo de leitura de gibis.  Na linguagem atual, ele vinha bombando.

            A gente sabia que o pai dele, gari, era um alcoólatra, e a mãe uma destemperada prostituta, não tinham esse cuidado com o menino, que foi crescendo com mais liberdade, sujeito aos riscos de sua auto defesa, com resistências de um gato do mato, rusticidade que me faltava na minha pré-adolescência, tanto que isso seria também tomado emprestado do meu amigo Domingos. Ele era um ano mais velho que a gente e não frequentava escola, sem nenhum alarde na época. Era bom em quase tudo, no estilingue, no jogo de gude, como artista de filme, no trapézio de cirquinho, ninguém melhor no esconde-esconde do que ele. Jogava sinuquinha (tinha um), com as bolinhas de gude  azuis de números colados de início, com quem aprendi a usar o taco como se fosse um canhoto.

Era um soldado pronto para a guerra e nisso distinguia-se de todos nós que não estávamos de prontidão. A não ser nas brincadeiras de mocinho e então matava-se com tiros de boca: - tchiééé. O baleado caía morto, conforme o combinado. Só que Davi, meio desaforado, era um bandido apanhado finalmente por Domingo, que fazia papel de um artista que dava ordem de prisão. Davi, se achando o máximo, preferiu ficar no alto do pé de madeira nova sem atentar para o  combinado.

A mão certeira de Dominguinhos numa flechada na testa e, para completar nosso espanto, Davi tombou no chão com sangramento, sem rebuliço algum, e sem saber agora como terminou a brincadeira.

Salvou-me, me livrou de morrer afogado na lagoa, quando fui tomar pé e ele percebeu que eu estava me afogando e no meu desespero me puxou pelo  cabelo, mas o que mais me marcou foi ele entrar no esquema do círculo de leitura de gibis sem saber ler, só para emprestar para nós as revistinhas por puro prazer. E eu adorava Cavaleiro Negro, sem saber que meu verdadeiro herói era ele,  Dominguinhos.

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A machadinha

 


 Para Dr. Robério Alves Neves

 Início do segundo ano primário. Aglomerado de alunos no corredor de acesso à sala de aula, naquela manhã de 1970. Um menino, chorando que fazia um horror, sendo arrastado pelo braço da mãe me chamou logo atenção.  Causou-me estranheza, na verdade. Fiquei meio envergonhado por ele.

- Oxe, como é que chora se está indo para escola?! pensei dentro de meus sete anos de idade. Mas ao tempo que me achei assim com minha responsabilidadezinha me achei também com certa inveja: - Ué! E podia chorar assim! Menino maluco! fotografei dele essa imagem, com os detalhes da mãe  arrastando o moleque de cabelo loirinho pelo braço, que dava seu showzinho logo cedo.

E esse menino loirinho iria para minha turma. Com quem fui pegando um pouco de rusticidade ao longo dos estudos que desenvolveríamos pela frente.  Em andar pelas ruas, jogar biroscas, pegar luta, tomar banho nas barragens escondidos dos pais e saber manejar o estilingue (pelo que nunca fui de tomar gosto). Escondido dos pais! Descobri que os pais dele eram velhos. Pudera! Aí  era fácil de driblar. Não eram como os meus.

Tomando banho num fim de tarde, um vento batendo solitário, longe de casa, mas preocupado, e alguém falava:

- Olhe sua mãe aí, cara.

Você pensando em brincadeira de menino, quando menos se esperava era sua mãe mesmo, com uma sandália na mão aproximando para pegar para bater. E você ia lá imaginar que sua mãe estava ali no meio do mato?

Quanto à maluquice, que parecia ser o charme dele, tirava isso para lá. Depois a gente foi aos poucos se conhecendo a ponto de estudarmos juntos para a prova de admissão, num só livro, à luz de candeeiro que amanhecera numa cadeira perto da cama. Esforço infantil que resultou contemplado com nota cinco para ambos e com advertência do diretor do ginásio, nosso vizinho:

_ Vocês passaram, você e Rock, mas me prometam não fazer a prova final da escola.

Ninguém iria lembrar daquela professora chata. Esse é o termo: chata. Nessa ocasião, minha briga particular passou a ser com Rock, ele tirara nota 5,0 e eu 5,2. Era ligeiramente melhor.

- Quem é Orlando Prado Martins?

Antes que a gente pensasse nalgum possível mal feito de Orlando, o diretor completou:

- Diga a ele que meus parabéns! Primeiro lugar: 8,5.

Mais um na incipiente turminha de ginásio, que formaríamos a partir dali, do primeiro ano ginasial, ao lado de Paulo de Nonô, o cara (ficou com esse apelido porque brigava  fácil  e como um não podia falar o nome do outro...).

Mas, no segundo ano, tivemos uns cadernos tipo brochura, de capa mole, com detalhes de atletas de Olimpíadas comprados na venda de Possidônio. Bonzinho para escrever. Então comprei uns dois na conta de pai. Num gesto de imitação de menino, ele resolveu levar um também, aproveitando a presença do pai, que acabou enfiando a mão no bolso e pagando os caderninhos. Foi quando observei que o pai dele, ao contrário do meu, era velho, mais relapso, por isso que ele vivia mais solto.

Mércia, filha de um homem rico, era nossa namoradinha. Nossa não. O máximo que aconteceu foi de eu passar a mão pelo cabelo arrumado dela. Mércia era namorada dele. Minha irmãzinha tinha dito qualquer coisa sobre ela preferir Rock. Oxi, não sabia Mércia que ele era maluco e andava com estilingue no pescoço! ‘Descobri que Mércia era maluca também, filha de um negociante raparigueiro que deixava a garota nas casas de conhecidos da cidade e a apanhava num opala verde no fim de tarde, depois de haver aprontado em bebedeiras nos bares em dia de feira.

Na casa de Rock tinha um sofá em que ele guardava as suas revistinhas de zorro a pato Donald.

- Cuidado!

A gente desencostava do sofá perguntando:

- Com quê?

E ele:

- Cuidado com a machadinha!

Eu sempre procurava descobrir que porra de machadinha era essa. E ele “cuidado com a machadinha”, ia passando e dizendo “cuidado com a machadinha”, que até hoje tenho essa sede de saber.

Já no início da adolescência, na turma da sétima série, descobrimos que Rock era pisciano, o que explicava mais ou menos a sua maluquice, quando, numa confusão de sala de aula, o professor, não habituado a resiliências, mormente com adolescentes, um dia apertava nossa turma:

- Faça o seguinte: ou aparece quem cuspiu no caderno do colega Rock ou todo mundo vai levar suspensão por três dias

O professor de inglês, além de pastor da Igreja local, era do Sul, de costumes e linguagem diferentes, meio xarope, considerava-se, e não ia voltar atrás.

Rock, numa confusão de meninos, de sacanagem, se queixara: “alguém cuspiu em meu caderno, professor! ”

O professor bem que tentou resolver, dando uma chance, mas quem é que queria se queimar perante a classe, para o professor se sair numa boa?

- Se não revelar o nome de quem cuspiu no caderno do colega Rock a turma toda entra em suspensão por três dias.

Estimulava a delação. Eu podia ser tudo, menos idiota de dizer “sou eu professor, livre a turma disso”, e Rock, com cara de “se arrependimento matasse”...

- O professor, acho que foi um passarinho desses que cagou na folha do caderno, deixe isso pra lá, disse olhando para o teto da sala, onde havia pardais.

Mas o professor não era da região, tinha outros costumes, então a turma B da sétima série ginasial de 1975 provou sua solidariedade ao colega e tomou uma suspensão de três dias.

Nessa ocasião, completaria meus catorze anos e, para o ano, iria estudar em Salvador, levando comigo o carinho desse gesto de apoio da minha turminha ginasial mas eu queria mesmo era saber da machadinha do sofá da casa de Rock.