sexta-feira, 14 de maio de 2021

Covid-19 leva Dr. Ginaldo Cerqueira Gomes

 


                  

         1969,  início de ano letivo. Da janela do prédio velho do Grupo Escolar Antônio Batista um menino, de uns seis anos de idade, espremido entre a professora e outros coleguinhas, nos saltos da curiosidade, assistia a cena que ficaria inserido nos anais da história de fundação do Ginásio D. José Pedro Costa, no município de Candiba, tendo à frente o prefeito Joaquim Neves da Silva, alguns vereadores, e um moço de roupa branca, nos seus vinte e oito anos, que chegava da capital para ser médico e o novo diretor do Ginásio.

-  Dr. Ginaldo  Cerqueira Gomes, como ele fazia questão de corrigir as pessoas simples com quem relacionava.

E o aluno de 6 anos de idade, com perdão da palavra, era este pobre cronista. Sobre esses dois é que vamos deixar aqui algumas gostas de tinta de vida.

Revolucionou os usos e costumes de um povo. Na linguagem, introduziu novos vocábulos e expressões de uso comum. Um sucesso nas festividades cívicas e tradicionais, como terno de reis por exemplo. O desfile do 7 de setembro de 1970 foi o melhor realizado. O carnaval de 70, com concurso de Rainha, também foi uma boa sacada

Estimulou o esporte com o Torneio de Futebol Dr. Ginaldo Cerqueira Gomes, cujo campeão (1974) foi o time de Zinho de Pedro Rocha. Na arte culinária introduziu o mungunzá e o vatapá.

E impôs respeito numa sociedade de gente atrasada, analfabeta mas direita e trabalhadora. Logo se espalhou sua fama na prática de médico generalista. Respeitado como pessoa que ajudava os necessitados. Inclusive, muitos que se conduziram bem na vida.

Ficava provisoriamente na casa de seu Badinho da Farmácia Cláudia, até passar para sua casa, arrumada a gosto,.

Havia os bailes da juventude na casa do médico. Eu morava perto e costumava freqüentar esses movimentos aos domingos. Os discos das músicas mais  badaladas na ocasião, uma discoteca! Eu tinha minhas parceiras nas danças. Para lá convergiam  meninas e  meninos da cidade, geralmente estudantes do ginásio.

 E ele fazia exames médicos para sua clientela da zona rural que lhe trazia passarinhos. A área do quintal, em formato de  “L”, era enfeitada com gaiolas. Com todo tipo de pássaro, formava-se uma orquestra natural. E para dar comida aos bichinhos e limpar as gaiolas? Serviço que acabou arranjando para Bigu, um seu vizinho, que, imitador que era, passou a imitá-lo no falar:

- Ô Bigu, você já deu comida aos pássaros?

Marcou por demais a nossa vida. Depois, Candiba ficou pequena para o seu amor ao ser humano e teve que ir para cidade vizinha de Guanambi, onde encontrou espaço e terreno fértil para expansão desse seu amor, caridoso que era.

Essa página de Guanambi, onde se destacou como médico e pessoa caridosa, que fique para outra ocasião. Eu quis apenas aproveitar e registrar, como se fosse para sair num importante retrato, aquele menino de seis anos de idade que presenciou  a sua entrada na vida nossa, naqueles anos  de 1969, então em pleno vigor para a vida de salvar vidas que resolveu abraçar. Para isso estará esperando-o, mais uma vez, a figura humana de seu Badinho da Famácia Cláudia. Peço uma salva de palmas para Dr. Ginaldo Cerqueira Gomes e acrescento mais: valeu, tio!

 

sexta-feira, 9 de abril de 2021

NA GODELA


Estranhava as cozinhadinhas que minha Irmã mais velha fazia, nas brincadeiras de bonecas com as amigas. Em vez de fazer de conta ela fazia de verdade. Cozinhava feijão, arroz e cortadinhos de mamão verde, em panelas pequenas, às vezes, por algum descuido mas sem reclamação, com cheiro de fumaça, minha preferência. Todo mundo sabe como era. Quem comia mesmo eram as donas das bonecas e convidados, como eu no caso, que ficava só ali, na godela.

Olhe que eu me viciei. Era uma comidinha sem fartura, que depois, para valer, vinha o almoço da casa. Mas não dispensava. Interrompia a brincadeira com os carrinhos de plástico para uma pausa: convidado para uma cozinhadinha. Quando era de minha irmã Nora..., era de tirar o chapéu. Era lorde, ou chique, como se dizia então.

Tinha um caixote de carrinhos de plásticos. Muito orgulho:

- Pega esse (que tinha as rodinhas de tampas de borrachas de frascos de injeção), é macio, uma beleza, e entregava o caminhãozinho à criancinha mais pobre que a gente, sempre de bico, que ficava só apreciando e nunca acontecia de roubar.

E muitos outros, que apareciam, pegavam um carrinho para brincar. No fim da tarde, hora de tomar banho, havia um garoto encarregado de receber os carros e dar baixa nos empréstimos.

Um dia era aniversário de uma boneca, minha irmã mandou distribuir o bolo mediante apresentação de um presente. Eu, no faz de conta, comi um pedaço de bolo de verdade, mas morri de rir quando minha irmã lamentou o presente entregue à Ereca, empregado de mãe, que saiu correndo com o seu pedaço de bolo:

- Por que, Nora? Tão bonitinho!  - eu disse a ela..

 Acontece que o sacana tinha enrolado num papel não um presente novo mas uma ursinho já velho e esquecido,  apanhado nos pertences dela.

Hoje considero minha irmã, ex-nuticionista do Hospital Roberto Santos, bom que se diga, uma boa cozinheira.

- O melhor arroz fumacento que já comi. Tem gosto de infância, Nora.

 

 

quarta-feira, 7 de abril de 2021

SEGREDO

 

 

         Entre brincadeira e falar sério, a propósito de algum lance dessa trivialidade, ela falou em lhe dar, dar mesmo,  e que podia escolher o local escrevendo com o dedo indicador sobre a farinha de trigo polvilhada na banca da cozinha.

 Escreveu, na esperteza que julgava ter de um menino de onze anos de idade, mais que ligeiro:

          - No “corredorzinho” (que havia lá entre as casas dela e dele).

          - Que corredorzinho? quis ela saber.

         Ele indicou com uma olhar além da janela.

         - Na cama, seu bobo... escreveu ela, segura nos seus dezessete anos, que só faltavam saltar do corpo.

         E assim foi, quase toda tarde, depois de deixar pronta para o fermento a massa do bolo. Pegava uma moeda e lhe entregava dizendo:

         _ Então vai ali em seu João e compra dois cigarros soltos, de marca Mistura Fina, pra mim, que estou te esperando no quarto.

          Logo estava de volta com os cigarros, ele, letárgico, ela, estirada na cama,  acendia um e  entre chupadas apressadas no cigarro:

- Você não vai contar pra ninguém não. Se eu sonhar que você contou pra alguém eu te mato, viu? dizia e então completava num baixo tom de voz: - Vem!

Fumava, que ele não sabia que o seu gemido, nessa confusão, vinha dos tragos do cigarro ou o que era. Vez por outra gritava. 

Gritava  baixinho, para disfarçar, só podia.

segunda-feira, 29 de março de 2021

PRONTA PARA VIAGEM

 


 Uma mulher pronta para uma viagem. Ela tem o semblante de uma ave preparada para erguer vôo, seu vôo - seu primeiro e de-ci-si-vo vôo. Olhadinha para os lados e zás ... ganhar o espaço... sideral, que imaginava todo seu quando chegasse a hora. Uma vez se desprendera e ficou leve no alto vendo seu corpo cá embaixo estirado e coberto com uma colcha. Quis voltar e voltou num simples ruflar. Não estava preparada. E agora, estava? Ajeitou-se melhor para uma última foto. Para a posteridade, pensou. Acabara de correr a mão de correção dos cabelos e nesse rito esboçou um sorriso em meio a dúvida que de imediato lhe assaltara, mas no final ficou apresentável, com a bolsinha à tiracolo combinando com a roupa em preto e branco e, no detalhe,  relógio de pulso folheado a ouro. Conhecido ritual. Sim, estaria ela dsiposta? Na partida, para a foto deu o clic. E para a vida, dera também o clic?

Não, não se dera nessa empreitada porque nunca entendera isso dessa forma. Ensaio e treino apenas, na espera do grande momento. Mas o estalo ecoou e agora? Tudo que acumulara, por necessidade ou por capricho, ia ter que pacientemente se desgrudar disso? Como ficaria a rotina? A começar do café da manhã, de tenra manhã, com o pai esquentando o carro na garagem, o rádio do vizinho ligado no programa da Rádio Inconfidência - Delmário é o Espetáculo. Os dias se escoando sem fazer alarde nenhum mas com a certeza do ar de renovação dos mesmos atos. Ou melhor, a dúvida? - tentativa de conhecimento dos segredos da imensidão universal. Difícil encontrar num universo de pontos de luz a sua luz de guia ao almejado terreno.

Contudo, há pessoas que se lançam em mergulho e outras que ensaiam apenas. Há pessoas que jogam para valer e outras que escondem o jogo. Certamente era uma dessas de ensaio e sonhos. Não conhecia nenhum jogo para disfarçar ou para jogar para valer e nem apostava no escuro, sem  certeza do retorno às almofadas do aconchego. Mormente quando se encontra em certa fase da vida e nada ainda resolvido, como dizia o poeta. Seria uma outra vida pós divórcio, com coisas resolvidas e algumas pendências? Filhos encaminhados na vida e seus pais precisando naturalmente de amparo assistencial, que descobrira agora estar confortavelmente ao seu alcance. Saboreou com sorriso esse sentimento que lhe adveio como uma brisa de renovação da manhã.

Tinha que tomar atitude. Foi com esse raciocínio que se aproximou da embarcação e, tal como um colibri do jardim de sua casa, determinou seu espaço sideral e voou mundo afora, para estar no mesmo ponto em que firmara equilíbrio de vôo anterior, cuja existência, como uma aprendizagem, haveria que doravante considerar.

 

Março de 2021

quarta-feira, 17 de março de 2021

3. O casamento


 

Para o casamento de sua filha, Osvaldo Dantas convidou para padrinhos o professor Francisco Pereira da Silva e esposa Isabel.  Ninguém melhor que o professor, uma das pessoas mais ilustres por essas paragens e um dos responsáveis pela formação da aluna Eunides. Antes, porém, os preparativos do casamento. Que deve ser contado nos mínimos detalhes.  Vestido de noiva feito por costureira de Guanambi, filha de Lolozinho, era só um detalhe.

Mais outros detalhes também cercavam esse casamento. Do balcão da loja de seu pai Osvaldo, Nidinha podia ver a praça. Pouco antes,  sua atenção se voltou para os movimentos de um moço descalços labutando com um animal. “Quem seria? Além do mais, descalços!” Ficou encabulada com aquilo, até que descobriu tratar-se do filho de seu Artur Prado e de Dona Ana. Amansava um burro. Era caprichoso o menino. Mostrava-se pelo menos. Logo estaria entrando em sua vida, para mergulhar num companheirismo de corpo e alma, que perduraria.

Por enquanto tratava de diálogo entre noivos, que se iniciava. Chegou até dizer da impossibilidade de se casar por agora, por não reunir condições:

- Não posso falar de casamento por agora não, Nide, pois, como se vê, meu lote para construir casa mal comecei a construção,  disse apontando o monte de pedras despejadas no local.

- Meu pai falou, Aleci, que você não precisa se preocupar com isso agora não, que a gente pode ficar com eles por uns tempos.

 Lembrou que  o futuro sogro falou para não se preocupar com casa, que ele podia ficar uns dois meses morando com os sogros. E ele, com a mãe doente, sem poder decidir.

- Acho que vou a Belo Horizonte levar minha mãe pra fazer uns exames e volto para o casamento.

Mas o que fez mesmo Aleci decidir? Segundo alguns, teria sido em razão de haver tomado café numa mesma xícara que a noiva, sendo flagrado pelo paparazzo do tio Silvino Martins, que mais que ligeiro aconselhou seu compadre Osvaldo:

- Tem que pegar a moça e o menino, compadre, e marcar logo esse casamento: já estão tomando café na mesma xícara.

Casamenteiro, que queria esse trato para o sobrinho Joaquim Neves. Ou  foi o episódio que se deu em Belo Horizonte?

No episódio de BH, ele, com a mãe doente, sem poder de decisão, sob o fogo juvenil de um animal indomável, iniciou-se numa aventura que poderia resultar numa quebra de compromisso, ao caminhar para os trilhos de um arrumação à mineira, quando sua mãe Ana, conhecendo sua cria, ainda que estando enferma, avisou a filha da dona da pensão, que logo se entusiasmara, servindo ao jovem Aleci um copo de toddy antes de dormir, todos os dias, que ele era noivo na Bahia. A moça por nome Iêda nunca mais esperou Aleci, com o copo de toddy, nem Aleci precisou esconder mais a aliança. Vieram então de volta após uns exames.

Dona Etelvina preparou um quarto para a mãe do noivo em sua casa, a que Ana compareceu, vestida para ocasião, ainda que adoentada, sob protestos da filha mais velha Zeni Prado,  com quem travou uma discussão:

- Ora, moça, Aleci tem mais cuidado com a mãe, que trata ela que nem uma filha sua. Não cabe essa preocupação não, falou firme dona Etelvina, como se desse um safanão geral, pondo um basta no assunto, para tristeza de Zeni, que no outro dia cedo veio para buscar a mãe.

Então chegou o dia 26 de julho de 1957, quando se casaram na igrejinha velha e no civil, na sala de visita de sua casa, que serviu para o baile, com os dois sanfoneiros de fama da região, e foram felizes para sempre, poder-se-ia acrescentar, malgrados os percalços encontrados pela frente. Como nesse mesmo dia, que ao noivo deu de querer que a festa se acabasse logo, que todo mundo se retirasse, para finalmente ter refreada sua tão sonhada expectativa por conta da mulher andar naqueles dias com seus segredos de moça e mulher.

 

 


sábado, 6 de fevereiro de 2021

 

A Vez que Roberto Carlos esteve em Candiba

 

Meteórica, poderia dizer. Sobre a passagem de Roberto Carlos por Candiba. Ano em que também o homem pisaria na lua. Período de muitos acontecimentos, que fazia parecer culminar com a percepção de um Brasil tricampeão no Mèxico-70. Mas não vamos aqui adiantar o rasgo de fogos de artifício que tal episódio significou em nossas vidas. Temos que colocar os pés no chão... ou na lua, melhor dizendo. Nada de tão estranho assim a passagem de Roberto Carlos por essas plagas. Somado a isso, eu me iniciava na leitura e naquela cartilha velha e ensebada conseguira ultrapassar a lição da dona Baratinha, como alívio:

- Eu também passei da Baratinha, disse Roque, um coleguinha de outra turma, quando brincávamos à sombra do pé de fícus na frente de casa.

 Eu e Roberto Carlos. Já nos conhecíamos de uns tampos atrás, quando meu tio Eujácio, a pedido, cantou para minha mãe Quero que você me aqueça neste inverno. Numa manhã de sol de infância, com menino entretido no quintal, só assuntando. 

Agora que começava a ler, fazia essa descoberta digna de paraíso, quando achei nas coisas de tia Lô um caderninho de arame com caligrafia de caneta tinteiro.  De uso adulto, quem tinha domínio. Dentro, em letras graúdas e redondas, estavam as canções de Roberto Carlos, exalando nas tintas os mais puros sentimentos. Num simples e diferente embalo.

E de Roberto Carlos eu procurava entender. Acompanhava o Rei e tudo o mais. Ano anterior, por exemplo, eu e minha irmã mais velha, Nora Nei, passamos perto da loja de dona Nida, na praça da Matriz, onde aconteciam as novidades. Lugar para receber até avião quanto mais... Era vendido lá o anel de casamento de Roberto e Nice, com uma capinha de asa de besouro no detalhe.

- Deve ser o toque especial que o diferenciava dos demais, pensei rápido comigo. 

         - Uma maravilha! - experimentou no dedo minha irmã, que parecia com a noiva do Rei, no estender o bracinho e dar azo à imaginação.

Brincava de cantor de rádio, cantando escondido, por detrás de  bobinas de papel de embrulho da loja. Alguém fingia ligar o rádio, para que eu cantasse uma canção incrementada. Me acompanhavam na brincadeira ora meu tio Dedê (mais novo), ora  minha irmã caçula, Marta. Passávamos nossas as tardes de infância em meio a caixas e mercadorias, com cheiro gostoso de tecidos que fazia sonhar.

Daqui pra frente

Tudo vai ser diferente

Você tem que aprender a ser gente

Que fim levou o caderno que até hoje tenho tesão por ele? Por certo fora retomado pela dona, que nada comentou sobre o assunto, apenas sobre a caneta tinteiro, que tive que devolver a tia Lô, sem autoridade nenhuma:

- Esses cornos pegaram minha caneta. Me dê aí, Colinha!

Foi então que surgiu a conversa de Roberto Carlos em Candiba. Colhi essa novidade e não quis mais saber de nenhum desmentido. O menino tinha seus segredos. Fiquei imaginando sua chegada triunfal naquela pracinha, que era prenhe de novidades do tipo.

- Roberto Carlos em Candiba! Deve vir no sábado que vem, dizia-se.

No vocabulário em voga, salvei dentro de meu arquivo natural e fiquei à espreita, pelas esquinas bispando, até que num dia de sábado, carros chegando na praça, olhei e... gulpe! Não podia deixar escapulir:

- Olhe ele ali, gritei para Dedê, que era pequeno demais para me acompanhar nessa empreita de fã.

         Acabei seguindo um carinha cabeludo vestindo meio a gosto mas tosco - um Roberto Carlos? Pirei feito adolescente, sem o saber. Havia alguns poucos RCs espalhados por ali, inda mais em dia de feira na cidade; não com carros bonitos, como aquele opala SS verde, que passou cinematograficamente e o apanhou, sob tímidos protestos meus, que gritei: Oh Roberto!

         Só Dedê presenciou minha mancada, mas, como já disse, ele era pequeno para poder reparar nessas coisas e nunca poderá me desmentir desse sonho que tive.