sábado, 4 de dezembro de 2021

O café


1.

Aos cinqüenta e tantos anos,

depois de cachaçadas e raparigagens,

desci de meu cavalo alto.

 

2.

Arriei  malas

assentada poeira das imensas (in)certezas

de dias idos e vividos,

 

3.

para assoprar com você a xícara

do café de Barra da Estiva

tantas vezes apressadamente engolido

sem o mínimo de atenção devida.

 

sábado, 27 de novembro de 2021

Quando morre uma parte de mim

 



Meus companheiros de infância, queria todos vivos. Um mora aqui, outro acolá, mas vivos, que a hora que a gente quiser se reúne. Amigo de infância é mais que parente. É parte da gente, ainda que esteja distante, casou, ficou velho, imprestável, mas ainda palpita num último sopro de vida.

È uma falta, como parte. E nós sentimos. No final, o que enterram de nós é só um pouco do que restou. E há aqueles com quem nem chegamos a relacionar mas sabíamos da sua existência. Mesma coisa. Hoje me chega a notícia de que um AVC pegou Roberto de Preta desprevenido.

Para quem não sabe, ele se chamava Roberto Carlos, homenagem ao cantor, que fazia grande sucesso na época. Roberto não fizera sucesso nenhum, senão nas pequeninas coisas da sua vida diária. Trabalhador braçal, mas dado também a uma roda de pandeiro e violão. Era irmão de Diquinho, cabeleireiro dos bons, criado por Zefa Parteira; de Dalva, menina criada por Virgulina. Ambos filhos de uma Lavadeira, Preta Rosa Pé de Onça, que, na verdade, se chamava Carmelita Rosa de Jesus.  O pai dele era Zé Mocó.

Era meu companheiro de infância. Nunca brincamos juntos, nem ele me deu algum trabalho. Mas sabia de sua existência.

         Tchau, Roberto.

 

Candiba/BA, 27/11/2021

NeiGeorgePrado

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

FRUTA AMOITADA

 

 1.

Era tanto o desejo calado sobre a garota

que ela amadureceu meio moça

como fruta amoitada

descoberta no quintal.

 

2.

Viver de acordo com as estações do ano

se faz calor, ponha o short;

se faz frio, um agasalho com todos os aparatos

de um lord.

 

3.

A gente vai vencendo todas as intempéries

segura no ritmo

não descarrilamento da primavera

 

4.

que você foi um dia...

(flores se abrindo)

preservação de segredos

nossos.

16/11/21

sábado, 23 de outubro de 2021

A Revolução das Coisas

 


         O autor da matéria que aqui se pretende tratar seria, é claro, também de nome George, mas não o Orwell, esse é o da Revolução dos Bichos. Como já se disse, existe uma revolução, não muito silenciosa, mas revolução das coisas.

É, a coisa. Repararam numa impressora quando resolve encrencar e não imprime nem a pau? Pois bem, ensaio para uma revolução iminente. Quando você consegue ajustar, que acende a luzinha e espera esfregando as mãos para zás... ela imprime mas um bocado de descarrego. Tive uma impressora, dessas, rebeldes, que era um horror. Panfletária. Tinha que desligar a tomada da parede para parar com a panfletagem. Gastava meu papel.

Outra, bem inamovível, replicar uma dor à porta que você mesmo havia batido e pressionado seu dedo. Minha mulher. Ela perde um bom tempo com essas inutilidades: brigando com as coisas inamovíveis, como se por vingança resolvesse. Compreendi que nesse caso pode ser aplicada a lei de talião, “dente por dente”. Se a porta, ao ser movimentada, prendeu seu dedinho, você pode revidar com um “de com força” nela. Pronto, ficamos quites. Pois bem, chega um dia que o dia é das coisas ... coisas inamovíveis, que sejam.

         Além disso, existem os fantasmas. Como uma luz (lâmpada) da sala, desde há muita apagada, resolve, sem mais nem menos, ficar acesa e iluminar inesperadamente, quando você nem dava mais ousadia a ela, nem ”ligava”. A geladeira que só pegava no tombo. O automóvel. É, automóvel treiteiro. Na hora de sair da garagem sai sem fazer nenhum barulho, como um amante bom astral; ou faz um barulho infernal, como um amante desastrado, luz acesa, buzinaço, limpadores de para brisa funcionando.

         Um dia quando chegava em casa, um telefone era arremessado da janela da sala.  E, engraçado, foi ver o aparelho passar por mim tirando fino, como se dissesse:

         - Hoje a barra está pesada.

         Quando entrei, vi minha mulher no sofá:

         - Essas desgraças não funcionam direito!

        E era o terceiro aparelho que tinha sido instalado pela companhia.

        Mas a revolução dos bens inamovíveis ia chegar. Ah, se não. Até hoje a mulher não sabe porque eu liguei os aparelhos de quando cheguei em casa, entrei na cozinha e achei televisão ligada na sala, rádio ligado, então cuidei do restante e liguei também  o fogão e o liquidificador.

        

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

 

Dois bolos, duas medidas

 

Ia fazer um bolo para o meu aniversário de 60 anos, sem me falar nada. Estou vendo a labuta na cozinha. E sem saber de nada, como de costume, entrei a revirar a cozinha bisbilhotando coisa de comer.  Até que me veio a ordem expressa para não mexer no bolo sobre o fogão. Minha mulher e minha cunhada exclamaram ao mesmo tempo:

- Mexe nesse daí, que é de todo mundo; nesse daqui não.

Havia dois bolos: o de todo mundo mexer e outro só para ver.

    Não sabia dessa política em casa. Levei uns quarenta e tantos anos para descobrir. No final, acostumei-me com o bolo que “podia mexer” e fiquei atrás dele toda manhã. O outro tive notícia dele, nem quis olhar mais.

 

 

A bênção

O professor Valmir, cara legal, falou para dar benção ao padre Capuchinho. Passei direto sorrindo, tomando por brincadeira o que era uma ordem do diretor.

                           A secretária

 Não se sabe bem como nem por que marcamos um almoço no restaurante esquinado do posto de gasolina do trecho que vai  para rodoviária, num encontro de muita ousadia de nossa parte. Eu, um Dom Juan jacaré e ela a secretária de uma colega. Tomaríamos umas cervejas e depois se veria o resto. Mas não, nem chegamos a esquentar um prévio namoro, ela passou a engatar coisas profundas que implicavam mudanças radicais, tipo separação. Eu iria me separar? E aí me trouxe para a realidade. Pelo que entendi, eu tinha que tomar a decisão naquela hora, de assumir o compromisso com ela, como um grande amor.

Então foi o que faltava para o choro de desiludida. Aí tive que pedir menos e recuei diante de tanta luz para aquela nova vida a dois, que se iniciava.  Desmanchamos ali mesmo um possível embrecho, com pedidos de desculpas pela esfregação e amasso de reconhecimento, e desde então...

Ela chorou um bocado. A mesa foi posta, e ela, loirinha dos olhos verdes e marejados, nem quis comer nada, o que foi de me causar uma profunda sem graceza.

 

 

 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Criancices

 1 -  Fazer negócio

Dei uma derradeira olhada nas lameirinhas dela, que era um colosso... de madeira, carroceria pintada de verde, todo transadinho, o caminhãozinho de brinquedo, que me encantava.

- Você não quer trocar numa casinha não... bacana, que fiz no quintal perto do  pé de coqueiro?

- E cadê? perguntava o menino filho do carpinteiro.

-  Lá em casa, mas você pode ir lá visitar a qualquer hora.

A casinha em questão era o que tinha de maior valor...  inestimável. Sem mais detalhes.

- Aí, fica ruim.

 - Então é quanto a mercedinha?

- Cr$ 500,00.

Dinheiro para gente grande! Tinha que entregar no quente Cr$ 250,00, que pai pegaria na gaveta da loja de tecidos, ali na praça do Mercado, ao modo de negócio:

- Quinhentos é muito alto. Tome, dê a ele esse dinheiro, que é uma boa entrada de negócio.

Assuntando nas lameirinhas da mercedinha, saí empurrando a novidade pela praça. E isso entre 1968 e 1969.

2 – Apreciando a beleza de BH-MG e contando vantagem:
- Eu tenho uma moto lá na Bahia.
- Verdade? Você roda com ela assim no asfalto? perguntou um menino de minha idade.
Tinha  acabado de tirar as rodinhas que ficavam de lado.
3 – Cozinhadinha
Acompanhava as cozinhadinhas que minha Irmã mais velha fazia. É que ela em vez de fazer de conta ela fazia de verdade o feijão, o arroz, cortadinhos, em panelas pequenas, com cheiro de fumaça. E na hora do presente, a gente dava uma boneca velha (dela mesma) embrulhada com papel bonito (aprendi com Ereca).
4 – Roupas de sair
Ao brincar de artista na casa de um colega, ele fantasiava com roupas de verdade (de sair);
5 – Segredo
Falou em lhe dar e que podia escolher o local escrevendo com o dedo indicador sobre a farinha de trigo polvilhada na maceira da Cozinha.
Escreveu: -  No “corredorzinho” (que havia lá entre a casa dela e o muro vizinho). 
- Na cama, seu bobo, acrescentou ela embaixo com sua letra bonita.
6 – Faltou força, Mocó
 Em mudança para cidade aprende logo só o que não presta. Mocó botava tanta força no taco ao Jogar sinuca, que a bola caía de tonta. Um dia ele precisava matar a bola sete. Deu com força, que a bola, após correr várias tabelas, veio pra o meio e parou perto da caçapa, rodopiando.
 - Diacho, faltou força!
7 – Tamanho GG
José, menino mais velho, Zé de Fausto, veterano na guerra (de meninos), tirou do bolso um nota amarelinha de mil cruzeiros e falou:

 - Vai lá na venda e compre tudo de bala de leite. Tome aqui esse chapéu e traga cheiinho.

 Podia comprar só uns duzentos, que já eram uma quantia grande e trazer o resto de troco.
 - Não. Comprar todinho.
No seu estilo: GG.
8 – Letra de formiga
 Letra de formiga. Parecia que em vez de usar pena, usava uma casca de arroz para escrever. Claudinha, até bonitinha, cabelo liso, de seda. Parecia economizar papel. A gente olhava com gosto  as anotações no seu caderno do assunto dado em sala  de aula. Era o contrário de um coleguinha de infância, hoje doutor Zander, que para escrever era um letra de elefante.
9 -  Um terreno rural
Deu a notícia ao sogro com entusiasmo, que comprara um fazendinha. A conversa que pairava era de um terreno de uns dois mil hectares. Eram dois hectares apenas, que produziu dois sacos de feijão.
10 – Passar no vestibular
Vestibular concorrendo para o curso de Letras (considerado sem muita concorrência), a gente ia olhar o resultado na parede e começava de baixo para cima, até que correu o dedo por maior e não achou. Ia embora, desencantado da vida, até que...
 -  Fez para que curso, Nei?
-  Letras Vernáculas.
- Corra aqui. Meus Parabéns, Nei. 2º lugar. Português 100%; Redação: 97%.
11 – Duas meninas e um careta
Era ligadona em mim. Escrevia meu nome na altura da coxa. Que menino não ia querer? Eu. Era areia demais pro meu caminhão. A gente passava na frente da casa dela para ir jogar bola, quando algum menino mais abelhudo olhava e gritava meu nome:
  - Corra aqui, cara, venha ver seu nome.
 Ficava envergonhado e caia fora. Pegava depois as “reportagens” dos colegas: Estava escrito na coxa, fora a fora, Nei George.

 Era bonita e tiradinha. No ensaio de quadrilha ficava amuada, enquanto não me colocavam como seu parceiro. 

 Fazíamos roupas do mesmo pano. Trocávamos presentes. Mas era areia demais para o meu caminhãozinho. Achava. Quando foi um dia o irmão veio me trazer recado de namoro com ela e eu disse que preferia a mais nova, que era menos interessante e ninguém cobiçava.