terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

 FAB

 

Robson nem caderno tinha. Quiçá uma caneta. Era um dos alunos do segundo semestre de Letras, que, sem encontrar encaixe, andava circulando pelo campus feito zumbi. Sentava na fila de trás, revirando novidades, que só por sua cabeça em cenas apocalípticas de filmes passavam: 

- Edson está comendo essa bacana – apontava os dois estudantes de papo prolongado.

- Conversa de colegas, Robson!

- Que conversa, Gustavo? Está todo mundo fodendo. Não vá me dizer que você não está comendo essa bacaninha que vem lhe pedir carona.

- Pelo amor de Deus, Robson! O mundo pra você acabou, é?

Difícil andar com Robson. Noutras palavras, era um chato. Fazia o tipo de burguesinho que ficou de fora de uma boa faculdade e agora estava ali para a gente suportá-lo nos seus azedumes, em protesto contra tudo  que não fosse do agrado. Rapaz de boa aparência e todos os requisitos protocolares. Mas nessa engrenagem faltava um dente. Daí essa inquietação de Robson. Que até parecia só eu/ entender. Talvez por conta da cola que dei a ele numa prova de Literatura, numa das tentativas de ajudá-lo, que teve início esse tratamento provisório. Ficava pondo panos quentes nas suas presepadas, reservando-lhe carteira:

- É de Robson essa carteira. Olhe ele chegando ali, ói! – reclamava.

Às vezes a gente saía pela cidade no carro do pai de Robson, de mil recomendações, com diálogo que eu flagrei um dia entre os dois no orelhão:

- Bom que eu não pego mais essa porra de carro – disse Robson em desabafo ao desligar o orelhão. Lembrava que “essa porra de carro” saiu depois de desligado o aparelho. O pai era de um rigor monstruoso.

- Ele te sufoca, cara – falamos em apoio.

E isso só contribuía para agravar o quadro psicológico do garoto. Numa dessas saídas, oferecemos carona a uma presumida garota da noite e tocamos para um motel. Aventura! Se dois em um era falta, nós estávamos em três. Levávamos mais um colega, o poeta. Mas todos os ratos eram pardos e a menina topou o convite e tapeou os três direitinho, de forma que ninguém comeu ninguém e todos se saíram machos. Encerramos a noitada forrando o estômago com sarapatel e cerveja, num bar encontrado ainda aberto perto da faculdade.

Os estilhaços da briga com o pai de Robson ficavam mais entre eles mesmos, só algumas fagulhas eram entrevistas, como, por exemplo, o fato de o pai, sem enxergar viabilidade para o mundo deles, discordar do curso em que o filho ingressara. Daí a bomba de um lado e de outro, numa explosão de relacionamento familiar. Mas por dedução, parece que o ramo de negócio em que se firmava a família era o de corretagem imobiliária. Robson falava muito de ser forçado a tomar uma atitude séria na vida, como maneira de resolver a parada

- Sumir, bicho! Qualquer hora eu pego um avião e desapareço por aí.

Ia fazer vinte e um anos. Não precisava mais de alguém alegando coisas e cobrando dele o impossível por isso. Vi um homem barbado chorar, que não deu tempo de pensar.

- Pra você me levar no aeroporto de moto, pode ser? De lá, vou pro Rio de Janeiro.

- Você é maluco, Robson? Quem vai pagar a passagem?

- O avião é da FAB, cara, não pago nada.

Marquei de apanhar, fui e apanhei um cara pronto,  mochila às costas. Fiz a viagem mais longa de moto até então. Imagem de cima para baixo mostraria o cinematográfico da dupla na pista, deixando a grande cidade para o passado, como página virada do caderno que Robson não levava consigo. O pai dele ligou para minha casa e só me perguntou se eu dava notícia de Robson, tendo desligado normalmente quando contei a verdade sobre a viagem. Dias depois apareceu Rose, colega de turma, e revelou-se uma bomba: escondia uma barriga de três meses e meio de gravidez.

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domingo, 5 de fevereiro de 2023

 

Ítalo

 Diante do oceano de inutilidades e achados maravilhosos, Ítalo perdia-se em autoconhecer-se. Talvez lá encontrasse a flautinha do presépio de seu Orlindo - velho comerciante que guardava a encomenda com esmero havia anos, desde sua visita a Bom Jesus da Lapa, no ano de mil e novecentos e...?

Ítalo era um menino de hábitos urbanos periclitando pela roça, lugar de vegetação vária, caminhos íngremes, riachos, córregos, grotas e até cachoeiras.

Por isso, na fazenda do pai, confiava sua segurança ao menino filho do vaqueiro. Assim, terminada a talhada de melancia, cuidavam de ir pelos campos abertos em frente, com mata fechada mais ao fim e prosa infantil de perguntas e respostas:

- Ali tem gado brabo?

- É só rodear o curral e passar beirando a cerca que não tem não.

-  Tem pé de umbuzeiro do outro lado?

- Tem. Nós vamos até lá.

Ítalo imitava a destreza do menino ao pular cerca, abrir cancela, tirar o pau da porteira, dar mergulho rápido no córrego e se refrescar. Só faltava carregar também um estilingue no pescoço. Sim, simpatizava com Neném. Ainda mais que ele acertou uma pombinha, de longe, numa só estinlingada. Tirava umbu de vez no lugar de difícil acesso:

- Esse! – apontava com o indicador Ìtalo.

- Tome! – ofertava Neném.

Brincaram um bocado. Na lagoa, pegando corrida no mergulho, chupando frutas, entre os carneiros que havia pelos prados, até  o escurecer ao cair da tarde, quando, com o berreiro dos bichos e farfalhar das árvores, chegava aviso de ir embora.

-  Vamos, Neném!                       

E Neném encabeçava, seguia comando do seu futuro patrão, a quem dera fruta no ponto de morder, umbu inchado e maduro, e com quem disputara mergulho no córrego.

Mas agora, nessa tarde, no caminhar de volta, notava que Neném ia ficando meio recanteado.

- Vamos pelo fundo, Neném, que a gente pega a estrada adiante e acaba conhecendo mais a mata e acha outros umbuzeiros,

Neném se manteve calado mas firme como se tivesse passado o posto de comando e ficado de prontidão para eventual socorro. Pelo menos esse foi o entendimento de Ítalo, que mais ousado ainda se tornou.

- Vamos por aqui, que tem uns pés de umbus  e árvores bonitas.

Saltaram a cerca e caíram numa mata sem uma nesga de sol, na qual foram adentrando tangidos por um enxame de abelhas. Longe, ouvia-se um berro do gado recolhido no curral perto da casa. Havia nesse berro prenúncio de uma noite iminente e fria. Conseguindo se desvencilhar das abelhas por entre árvores que faziam ofuscar a capoeira, Ítalo ergueu-se à procura do companheiro, que, para seu espanto, chorava. Como a um neném;  o estilingue esquecido no pescoço mostrava  que ele era apenas um meninão com medo de escuro sem nenhuma magia.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

 

Regina

1.

Estava jogando sinuca com Roque na hora que todos correram para as portas  do bar:

- Quero ver também, porra! Com licença! – falei.

            Ficava um amontoado de curiosos. Novidade nenhuma. Como sempre. No bar do Borba havia uma enorme mesa de sinuca que segurava a rapazeada na parte de cedo.

            - Chegaram essa noite de S. Paulo. São minhas duas irmãs mais velhas e sobrinhos – disse Roque dando uma tacada forte na bola.

            Enfiei-me no meio e fotografei mentalmente a sobrinha de Roque, dizendo por fim:

            - Vai ser minha namorada! –  e fui desocupar a sinuca, abandonando o taco na mesa.- Sua sobrinha é um tesouro, Roque – arrematei.

- 16 anos, cara.

E já estavam desenhadas minhas férias, com clima de filme de sessão da tarde e as aventuras de dois jovens. Ele, doido por uma paixão e ela, também, cheirando a hortelã e mel de abelha.

- Como é o nome dela, Roque? –  gritei entusiasmado.

- Regina, filha de minha irmã mais velha Hortência, de seu segundo casamento.

 - Gustavo e Regina, um amor descuidado que brotou  a tempo. Começou a rolar o  filme dentro de mim.

-  Temos que falar com a mocinha – disse Ricardo a um canto.

- Para ver se aceita fazer?  – falou Gilba, que pegou meu taco da mesa.

- Agora mesmo, cara – retornou Roque, com firmeza.

 - Minha equipe é de primeira – eu disse.

Assim, com esse espírito empreendedor, formou-se uma dupla, sob a chefia do tio, para saber de Regina.

- Fico na espera – eu disse mascando chiclete.

- Jogue fora. Cuspa, Vai falar com a garota e você nem imagina como ela é – ralhou Roque, o tio em ação.           

- Aguardo. Vamos lá então! – gritei apreensivo desfazendo-me do chiclete e penteando os cabelos com os dedos.

 

 2.

- Chega, meu tio. Chega! – gritava engraçado em paulistês a lourinha,

- Vou te apresentar logo esse cara. Olhe ele ali se escondendo. Venha cá, rapaz, pra você civilizar mais um pouco, resenhava Roque.

Ela falava retirando as mãos do tio, de seus ombros. Bonitinha. E era tímida também.

- Realmente, Roque – murmurei.

Dei beijinhos de apresentação. Com pouco, estávamos sentados no banco da pracinha batendo papo com sotaque paulista e tudo.

- Esse negócio do filme é só metáfora, Regina.

- Achou que eu estava ligada?

Interessante que a gente se aproximava cada vez mais. Resolvemos dar um giro pela cidade e logo estaríamos de volta:

- Temos um universo para conversar – eu  disse 

- E o dia é pouco. A vida... – ela se deixou calar.

- Temos que delimitar, não é? – retornei.

- Tempo: 1978, espaço: Brasil. Temos que versar aí dentro. Nosso mergulho é nesse universo, depois vamos ampliando –  ela ensinava..

Depois, virei-me para os  lados e para ela:

- Exatamente, Regina. Merecemos um beijo. Com licença – beijei a garota, que me  ofereceu o rosto em paz.

- Uma caixa dentro da outra, confirmou ela com olhos amendoados.

- Você já faz parte de minha caixinha – dei outro beijo em Regina. Vamos sair à noite! Combinado?

- Combinado.

Tiirava um chiclete do bolso, quando ela me pediu um estendendo a mão. Dividi a goma numa dentada em dois pedaços. Ela fechou a mão, cerrou os olhos e abriu  a boca, queria a goma de mascar ali, onde coloquei com outro beijo.    

 


3.

            Quando passei por lá no carro de pai, dei uma buzinadinha, apareceu Roque:
            - Pode ir embora, cara. Zebrou tudo. Guerra das Malvinas.

- Como assim, Roque?

            - Conheço as duas. Morei lá com elas.  As duas brigaram. A briga delas é  algo antológico. Uma segunda guerra mundial.

            - A gente não tem nada com isso.

            - Nada, mas sobrou pra você. Hortência proibiu ela de sair e até de namorar aqui. Bateu o martelo. Não abre nem com a porra. Briga delas ninguém entra. Não duvido nada de querer voltar para S. Paulo amanhã. Elas não são como nós aqui não. Costume feio. Sem respeito. E os nomes?

            - Mas deixamos combinado! Eu não poderia falar com ela?

            - Nesse momento não. Estão isoladas. Não falam com ninguém.

            Quando tudo parecia caminhar nos eixos da normalidade, surgia das nuvens essa escuridão de mundo!  Espremia-me de medo, apanhado pela impotência repentina.

- Tem que haver um jeito – disse Gustavo, choramingando, em frouxa diligência na partida do automóvel.

- Espere aí, Roque, briga lá em S. Paulo é uma coisa e aqui não é S. Paulo,

- Ela vai dizer que é a casa de seus pais.

-  Regina pode dormir em outra casa? Dorme com minha prima ou lá em casa.

Também já cansado, Roque ponderou

- É, dar para conversar sobre isso.- Espere aí.

Foi e sumiu lá para dentro. Não se falou mais em Roque.  Passaram-se séculos de agonia, parodiando o poeta., e nada. Até que ao volver para casa, de lá saíram Roque com a prima e uma sacola de roupas atirada. Saltei fora e peguei a sacola atirada que ficara para trás e fui chamando com uma alegria imensa:

- Vamos, Regina!

 

domingo, 15 de janeiro de 2023

 

Iniciações

 

 Fernanda vestiu apressadamente o uniforme. Fresquinha do banho, veio para ele. Beto a tomou num abraço, encostando-a na parede da saleta. Depois ficaram macetando, que era bom assim permanecer, não tivesse que logo seguir para o colégio. Vizinho, sempre passava na casa dos Gonçalves para ir para a escola em companhia dos irmãos dela, Ismael e Paulinho. Mas, claro, toda atenção para a moça, que era noiva compromissada. Era sagrado. Um esfrega-esfrega e depois ia se juntar com os colegas.

Essas casquinhas valiam ouro. Nem sabia como aquilo começou. Se foi mais por ato extintivo dele ou dela, Fernanda. Essas coisas acontecem sem culpa de ninguém. Ela era mais velha, nos seus 17 anos; com namorado que aparecia só nos fins de semana; ele, nos seus 13, durante a semana de aulas, só com imaginação. Imaginação do mundo inteiro. Vai que ela fazia também com o namorado. Pouco mas fazia. Mas com ele, Beto, menino, era mais à vontade, sem, contudo, demonstrar encegueiramento. Por isso que Fernanda permitia e até avisava quando o noivo ia aparecer:

- Essa semana não que Jonas vai vir – e ria, sem entusiasmo algum, como se fosse hora de ele aproveitar  mais nesses amassos,

Interessante o respeito que nutria em relação à menina noiva: não havia beijos, eram só abraços. Mesmo porque ela não era nada bonita nem engraçada. O normal de uma menina branca, criada na simplicidade do trato, rústica, pronta para o matrimônio. Falavam com sussurros. E isso aumentava o tesão de adolescente,

- Você pode ficar mais tempo, que Jonas mandou recado que será na outra semana a vinda dele.

- É, Fernandinha? – sussurrou.

Ela se abriu num sorriso e perguntou porque ele estava falando baixo.  Respondeu que era para ouvir a voz dela no mesmo diapasão, que era gostoso. Aí ficaram cochichando como se fosse  segredo, ousadia.  Pararam com a pegação ao ouvir o irmão  Ismael chamar por Beto lá fora. Prometera  ausentar-se nos dias de Jonas.

Passava mais ao largo e via as duas cadeiras na frente da casa. O casal namorava inamovível e num quase silêncio. Imagem congelada. Umas voltas na pracinha abraçados até a hora de se recolherem. Haveria repetição na semana seguinte. E até lá, Beto era o substituto. Era um gol que aprendia a fazer nessas  iniciações.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Duas maçãs

 


 

            Beto abriu a geladeira e apanhou duas maçãs. Mordeu uma e guardou a outra para a garota, que retornava do banho. Garota, adjetivo por demais elogioso para quem era divorciada e mãe. Mas ele podia pensar assim. Autoridade de quem foi contemporâneo de ginásio e à distância admirava aqueles olhos verdes. Para sempre. E agora que havia acabado de tomar umas cervejas juntos, via cavalo selado passar diante da porta e não podia deixar escapar. Nesse interregno, tivera apenas flashes de notícias do casamento, do filho e do divórcio, mas sobraram ainda a garota Clotildes e seus esverdeados olhos.

             Muito “latim” gastara para chegar até ali e dava graças a Deus.. Era um domingo com novidade de futebol com funcionários da empresa para qual ela trabalhava  como secretária.  Sentara-se no meio da torcida, cumprimentando-a:

            - Olá! Quanto tempo? Tudo bem?

            - Tudo bem. Cadê seu amigo Tom?

Disse que ele não iria aparecer, claro. Porra de Tom! Tinha que procurar a turma dele, dadas as peraltices de solteiro e não se infiltrar no meio dos trintões! Além do mais, em vez de recepção esfuziante um maior conhecimento de causa acumulado. Que dava para desfrutar como se saboreasse um sorvete de casquinha.  Num papo delicioso, que fazia a garota tremer ao rir:

- Risada bonita a sua – falou Beto.

Tom já era passado. Falou-se da beleza que ela exalava.  Da empresa, Passou a olhar com mais simpatia o imponente emblema no ônibus que os transportara. Sua imagem era dessa possante marca, integrante do cotidiano. Acompanhava também os colegas, como apoio moral no esporte, forma de interagir.

- Lembro-me do seu irmão, ponta direita do nosso time no colégio. Cobrava faltas. Mas eu gostava dele por causa dos olhos, iguais aos seus,

-  Eu era desejada pela meninada, bons tempos – disse, prendendo Beto às bolas de gude que carregava no olhar de ardósia.

- Desejo que continua, Clotildes – Beto sinalizou uma cantada envolvendo-a com um abraço, quadro que permaneceria daí em diante regado a cerveja no meio da torcida.  – De você só as  manchetes me chegavam.

- Pelos menos dava manchete? Espero que..

- Não. Casamento, filha e divórcio. Só.

- Já passou, graças a Deus!

- Claro. Para mim, você é a garota comportada da banda do sete de setembro. Hoje é meu reencontro. E vamos tomar mais uma rodada.

Afogueados pelas latinhas de cerveja da tarde, ajustaram-se para um beijo de velhos conhecidos, no momento crepuscular em que os carros se movimentavam em retirada numa buzinação sem fim;

- Aqui eu sou só comerciante e há coisa que não vejo – era a dona da barraca anunciando não se importar com a condição de casado de Beto..

- O jogo terminou empatado e o ônibus estava chamando.

- Eu te levo no meu carro, disse a ela, que foi correndo avisar o motorista do transporte de logadores.

Perpassado na memória como uma fita de cinema, viu-se conduzindo Clotildes ao leito para uma transa normal, sem artifícios amorosos. Antes do carro se por na estrada, Beto entregou a fruta a Clotildes, que deu uma mordida de romper o silêncio. Pronto, as maçãs finalizariam, a contento,  o reencontro daquelas duas vidas.  

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Camada têxtil

 

O acontecido, essa camada têxtil, esse véu, essa máscara, essa coisa mais parecida com certa manhã, ao despertar de sonhos intranqüilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso, isso não pode ser atribuído à pandemia ou a outra forma de morrer, que eu estou aqui para contar ou pelo menos tentar.

Quando entrei no mundo kafkiano, só à guisa de introdução, até bem pouco tempo, não me conformava com essa transformação de Gregor Samsa sem nenhum protesto das pessoas que o viam prostrado, e em todos esses anos me mantive calado.

Agora eu vejo meu amigo José Roberto morto e não posso dizer que ele se encontra nesta situação. Não posso e não devo. Existe uma firmeza convencional nisso. E é desse segredo que eu quero tratar.

Começo por dizer da visão geral das pessoas, essa de que estão todas mortas num ponto ou noutro. O sigilo não seria uma mão de uma espécie de material têxtil, teia de aranha especial, que faz com que a gente possa ver tudo mas com certas nuances.

 Por exemplo, Josefina não se pinta mais como uma fatal, apesar da crueldade do tempo. Você olha e diz: quem já foi Naninha? José Roberto, vistoso de outros carnavais, já chega num jeito cansado de guerra. E a professora de lingüística, solteirona, ainda é professora e solteira? Ainda fuma? Sônia ainda é noiva ou saiu fora? Muitas dessas figuras lembradas são poeira que se assentou, diante do nosso longo silêncio, outras não, vivem sob o véu, essa camada tênue, que ora pretendo furar.

Ligo para Zé Roberto:

- Morto? Eu? – Zé recusa, nega.

- Você porque não pode ver, Zé, mas é verdade.

- Por causa da minha doença. Eu andei mesmo com...

- Pronto. Corta! – gritei igual a um diretor de cinema.

Com Josefina foi outro papo:

- Me fale então das celebridades, disse ela. Pelé está no hospital.

-  Pelé, também:  Rei morto, Rei posto. Roberto Carlos, depois que Erasmo se foi, eles têm medo do médium pedir parceria nas suas composições.

E por aí a gente enxerga alguma explicação da coisa. Pena não poder expandir-se ao pó e se saber do destino da professora de lingüística nem do corpão de Sônia, com certeza  igualada  a Josefina, que foi maravilhosa.

Assim como não vemos no dia-a-dia o escorrer das estações do ano e o crescimento da barba, damos de invadir a grama de nosso quintal e encontrar figuras kafkianas de verdade e não figuras de linguagem. Assim é a vida. Tudo no seu devido tempo. Baixemos o véu e sosseguemos o facho.

 

 

 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Aula vaga

 

Uma colegial desperta para a vida num dia de aula vaga

 

 Ela não estava atrasada. Pegou o par de tênis devidamente escovado. Ajeitou-se, por fim, no uniforme. À saída, um toque alheatório de lavanda.  Costumes. Podia desaparecer um mundo de coisas, menos sua marca, seu tchan, seu bland, melhor dizendo. A presilha no lado esquerdo do cabelo castanho.  Um chiclete tutti frutti, que até o portão do Colégio seria mascado, depois cuspido fora. E isso tudo era mais um dia que passava em sua vida. Banho tomado, fresca, com seu aroma, saía para o Colégio naquele início de tarde, que prometia nenhum desfecho, senão dentro de uma normalidade que se avizinhava canhestra.

Vida de uma meninazinha. De cidade pequena. Estreita em tudo. Qual seria a hora de crescer? Abraçar o palpável e o impalpável. O que valesse.  Sair dessa tristeza e mergulhar nesse universo desconhecido, que se ia desanuviando aos poucos. Novas imagens. Gente bonita, diferente. Outro papo.

- Boa tarde! – cumprimentou Cerlândia, sozinha no pátio.

Moça sem modos, morava com os tios. Que mais sabia sobre a menina, que fora paquera de seu irmão Erasmo, que rompeu o relacionamento por conta de sua conduta escorregadia? Quando alguém se entusiasmava com ela, ela logo escapava.

- E aí, menina, que dia vai assumir Erasmo e sossegar o facho?

- E ele, Gorete, deixou de ser múmia? - respondeu com outra pergunta, no seu jeito rebelde de ser, segura no seu sorriso em que se destacavam as covinhas do rosto e seus cachos aveludados de cabelo.

Gorete, que estava de aula vaga, achou foi graça e também se abriu num sorriso:

- Que mais? – deu corda.

- Os caras é que ficam atrás de Tina Charles.

- Quem é essa Tina Charles, menina?

- Da música I love to love – respondeu com passos de dança e sacudindo os cachos.

Notou que Cerlândia usava outra calça em lugar da do uniforme, mais cocota, na moda.

- Como é que deixaram você entrar assim?

- Por que você acha que estou aqui fora da sala? – disse e deu de ombros, como se fosse mais uma das suas.

 No outro dia, o sol sairia de qualquer maneira. Uma portaria de censura à aluna seria baixada no mural, com cópia encaminhada para casa dos tios dela, analfabetos, coitados. A sineta do Colégio tocaria na hora do recreio e no final do turno.  E à noite, para algumas, como Cerlândia, haveria Tina Charles no barzinho da praça. Ela já conhecia outros caminhos.  Morara em S. Paulo. Não era tão boba.

Falando de S. Paulo, a garota chegava encher de verde os olhos que já eram verdes. Nesse bate papo, acabou até aceitando ir para S. Paulo no fim de semana, seu maior sonho,  e até combinaram  detalhes.

- Então fica feito o trato pro fim de semana? – Cerlândia quis confirmação.

Deram-se as mãos como arremate do entendimento. Quando Gorete ia entrando em sala de aula, ouviu atrás de si:

- Vai nada,  você não tem coragem, Gorete!

Gorete, que não era mais Gorete, viu que sua vida dependia de uma atitude sua, então resolveu se abrir de vez:

- Eu vou até hoje mesmo, agora!

Juntou livros e cadernos nos peitos e saiu em companhia da garota. Quando deram por fé, estavam as duas na praça, diante de um supermercado, comprando uns pacotes de velas, por sugestão de Gorete.

Estrada vencida sem plano, com histórias que iam sendo contadas, sem pressa, sem nada, em meio a brincadeiras e passos de dança, que chutavam os seixos. Daí que, muito se falou sobre Erasmo, por quem, sem demonstração aparente, estava ela apaixonada.

Um friozinho de beira de serra, de gerais, latidos de cães, iam cortando a prosa que era boa. Podia se ver a cidade lá embaixo com seus pontinhos de luz, quando Gorete gritou:

- As velas! Temos que parar numa dessas casas e pedir pouso.

Pousaram na casa de dona Neném, que fritou ovos com bastante cebola:

- Eu não gosto de cebola!

- Deixa que eu cato, Tina - segredou Gorete na manhãzinha.

Depois foi só o ermo. De um lado e de outro. E então um enjôo, um vazio que ficava e que se produzia por dentro. Nem lembrava da mãe e do pai, mas agora!... E procurava espiar pelas frestas da vegetação do trecho íngreme a trilhar. Estavam perdidas, eis a verdade, que entalava Gorete.

Quando num lampejo vermelho, viu que era a camisa de seu irmão com mais pessoas procurando por ela, então chamou pelo irmão, que veio e a abraçou, ambos em choro. Gorete tinha alguém por ela, afinal.

O que mais pesou, no entanto, foi Tina Charles, Tina Charles não, Cerlândia, sem nenhum parente, vendo o demorado abraço de irmãos, por ela implorar debaixo dos cachos e com humildade de uma  criança que foi longe demais:

- Erasmo, me abrace também.