sexta-feira, 29 de setembro de 2023

DORA

 

1.

 

- Uns 150 km! – gritou o moço da borracharia.

Edu gravou na mente a informação, porque naquele ermo não havia placas e ele tinha que retomar a estrada principal. Mentalizar também que na vida, mar de utilidades e inutilidades, de perdidos, achados e descobertas, tudo se pautava no devido tempo. Sem pressa. Muito chão. Devia chegar lá por volta das oito da noite. 

            A vida lhe aparecia arreganhada, por um ângulo, mas não iria deixar-se conduzir por aí. Calma. Estava presenciando uma mudança. Democracia acima de tudo. Nada desses métodos autoritários. Isso estava sendo ultrapassado.  Dizia o momento político do país, nas fachadas dos muros de ontem as frases de combate de sempre, depois de mais de vinte anos de uma Ditadura Militar, de difícil desgrude. Quando se pensava haver superado trecho de lama, descobria-se na bainha da calça um respingo. Fazia lembrar canção de Chico  Buarque de Holanda: “A gente vai levando ”.

            Numa breve retrospectiva, logo no segundo semestre, tentara um concurso público para a polícia federal e nele deixou de assinalar alternativa correta que envolvia questão de hierarquia. Nem pensou:

- Não nasci para soldado - e assinalou uma outra, bancando o democrata de esquerda, que combinava melhor com a barba.

Até que mais adiante, se descobriu no bolso uma ordem de um famoso deputado federal para um contrato de estagiário.

- Todo mundo? E os outros? – perguntava ao colega, estagiário remunerado.

.- Não, os outros são voluntários – dizia o colega Ramon.

- Então não quero. Só porque fui indicado por influência política?

E não aceitou mesmo, tendo o papel se desmanchado no bolso, com o “autorizo” do deputado. Ramon chegou a comentar

- É bom não está precisando, velho, mas era o ideal. Se outros ficaram de fora você não tem culpa. É revoltante, mas é assim que anda.

Graças a Deus – pensou Edu, visualizando a estrada em frente. Interessante esse sentimento de que não havia uma paralisação para se ingressar no jogo, que já estava ocorrendo. E ele ainda com uns lampejos desses.

.- Loucura, olhe a bola! – gritava alguém de uma antiga peleja.

Tinha que se sacudir por vezes. Deixar assentarem as idéias para uma melhor organicidade. Conter, domar a fera que existia dentro de si. Saber entrar:

- Toca! – tabelava com a experiência que iria aos poucos acumular.

O desenho era esse. Competia a ele, em respeitos às regras, dar realidade ao idealizado e pronto. Vencidos os desvios, retomara a estrada principal e nem se dera por isso, entretido que estava. A serra que avistava ao alto era sinal de chegada, antes de clima alvissareiro, agora nem tanto,

2.

 

Amanhecera o dia com cara de trabalho à espera, tendo que acompanhar o caso de um rapaz tonto acusado de “espiar” lavadeiras  na lagoa. O pai dele já estava à porta. Era um trabalhador rural a final de contas. Primário, bons antecedentes, com os requisitos de liberdade provisória e não havia certeza de que estava masturbando no momento de flagrante. Conversara com o delegado, que pareceu acolher mais a origem do defensor que o argumento jurídico de relaxamento da prisão.

- Seu pais são pessoas maravilhosas, Doutor. Dona Matilde me ligou mais cedo.

 Ficou entendido, de leve, haver levado um a zero da família. Sua sombra de poder era enorme. Saíra com o cliente até lá fora, onde os pais dele o aguardavam numa charrete.  Em vez de ganhos, gastou ali explicações para conforto moral de pai e filho, ambos assustados. Correu os olhos em volta em busca do moço com seu carro, um cara que lhe arranjaram de companheiro naquela diligência.

- Aqui, Doutor.

Ele acenava de um barzinho, para onde trouxera o carro, já lavado e lustrando ao sol da manhã, como menino de banho tomado.

- Ficou novo em folha – disse.

- Edvaldo, Doutor – respondeu apresentando-se.

- Oxi, você não é um que esteve envolvido num caso de rapto de uma menor?

-  Ah, o Doutor lembra disso? Faz tempo.  Era uma namorada. Na época, os pais dela eram contra. Mas já casamos, Doutor, e até separamos.

- Diziam que você era perigoso, violento, essas coisas todas... – Edu ia puxar o fio da meada de um passado mas se conteve.

- Diziam muita coisa, né, Doutor?

E foi da prosa com Edvaldo que Edu acabou por fazer um apanhado da conjuntura. Não podia entrar em campo e perguntar a que horas começava a partida. A política local estava fervilhando. Queria avisar que entraria, mas, inconsciente, já estava fazendo parte. A notícia da soltura de um lavrador da cadeia corria em detalhes pela cidade. que o novo advogado falou isso e aquilo para o delegado aceitar. Não tinha essa de ir atrás desmentindo, passava-se adiante.

- Amanhã temos que comparecer na Fazenda Pau de Ferro para fazer um acordo na distribuição de água à comunidade local – lembrava a sua agenda o secretário improvisado.

- Dizem que a votação de lá vai melhorar pra nós – retornava Edvaldo.

Na realidade, só iria tomar por termo um ajuste amigável (já conversado entre as partes) para por fim a demanda judicial e acalmar os ânimos dos moradores. Muito importante o termo. Um dos presentes guardava uma folha amarela. Um texto datilografado, que demonstrava como foi acordado à época.

 E outros episódios dessa ajuda compulsória à atividade profissional foram surgindo mais adiante. Perguntado por seu pai como ía a advocacia, respondia que pegara um inventário e que se maravilhou quando viu o cliente debulhando pacotes de dinheiro sobre a mesa;

- É, meu filho, saiu daqui.

Referia-se ele ao empréstimo que fizera a um fazendeiro naquela manhã. Percebia Edu que com mais essa subia para dois a zero o placar de decepções que carregava.

3.

              Vinha-lhe um vazio e o pensamento de até quando sua carreira iria seguir assim, guiando-se com essa rodinha de proteção. 

            - Deixe essa preocupação pra gente e não pra você, Edu – ouvia de seus colegas nos meios forenses.

Isso ia avolumando na sua cabeça, que já não aguentava mais. Outro dia fora surpreendido por seu parente vendedor lhe entregando um documento de veículo, capacete e uma chave de motocicleta, nem mais nem menos.

- Oxi, Geraldinho, se explique!

- Você não gostou?

O sacana tinha chegado com a moto, depois de algumas peripécias, na frente de sua família, que teceu elogios. E ele de imediato soltou uma das suas:

- Quem gostou mesmo foi Edu, mas disse que não tem o dinheiro.

O velho comprou na hora e fez com que ele viesse trazer o presente. Aí o placar já estava nas alturas, que ele tinha que driblar até o avô, querendo lhe dar o dinheiro para comprar o anel de formatura, a que, infelizmente, não pôde comparecer.

À noite, foi policiar adversários numa da regiões na zona rural, quando de um matagal surgiu Edvaldo na garupa de uma moto:

- Psiu! Doutor, eu posso jogar essa pedra no pára-brisa de uns adversários que estão ali pedindo voto.

Edu viu o tamanho da pedra e pensou nas conseqüências nefastas que poderiam resultar:

- Pelo amor de Deus! De jeito nenhum. Não faça isso.  Deixe eles.

Edvaldo só esperava o estalo de uma autorização para fazer uma desgraça e acabou recebendo dele um não. Era um democrata e não ia chancelar tal conduta, mas ficava feio na foto para eleitores como Edvaldo.

Ao se dirigir para o bar, naquela noite, agradeceria a Deus pelo que  deixara de fazer. Havia um clima de guerra, mas a notícia de que tradicionais adversários políticos teriam sido atingidos com uma pedra, em combate na compra de votos, não seria bem recebido pelo povo. Para o inferno a questão eleitoral, o ferimento seria na consciência da pessoa de formação cristã. Com ele, Edu, estava encerrado essa prática.

Pesaria, no entanto, o fato de ele ter passado a mão numa garota, que rondava os escurinhos da boate e que ele, Edu, descobrira sozinha no ponto de bala:

- Vamos sair daqui, garota? ´- propôs envolvendo-a num abraço.

        Não sabia Edu que essa garota, que coroava sua noite de rei davi,  era, na realidade, Dora, a ex-mulher de Edvaldo, que se despedia da cidade e viajaria para o Sul no dia seguinte.

 

 


segunda-feira, 11 de setembro de 2023

A sorte

 


 

Escolheu apanhar a nota menor, porque, caso descoberto o furto, perpassaria a ideia de “coisa de menino”, apenas, como se fazia então, e ele não estaria dando cheiro na parada.

Era o que estava diante de si e o desafiava: aquelas duas notas, uma de cinco e outra de um mil cruzeiros. A de Tiradentes, cédula vermelha, que lhe fazia tremer e acelerar o coração, era alta. Após ponderações, escolheu a de Pedro Álvares Cabral. Compraria umas balas doces, sacos de pães, bolachas, sorvetes, guaraná e ainda sobrava muito, que teria que esconder num monte de alvenarias lá no fim da rua ou ir reservando para apostas no jogo. Pronto, ficaria um bom tempo sem aporrinhações. Serviria de lenitivo, não mais estaria sujeito ao nervosismo da mãe, depois que sua irmã chegara para casa com filho para criar.  A mãe, que o pegara ainda bebê do parto de uma lavadeira alcoólatra, mudara completamente, do amor para o temor, e vivia achando jeito de repreensões e surras, instadas por ciumeiras de Deodata. Principalmente quando a mãe, apesar de estampada moral, nas suas atividades como ajudante de serviços de partos, tomava umas pingas a mais.

Ia-se conduzindo sob o clima da rigidez infernal, o que o tornava negligente com os estudos, mas, sem muita palmatória, pelo menos alcançara a suficiência das primeiras letras. Daí que surgiu um garoto, o Tom, que pegava bem no gol do time de adultos. Chegou a substituir o goleiro da seleção local. Conquistara com facilidade o carinho dos torcedores, de quem ouvira seu nome ser gritado: “Espalma, Tom! Vai nela, Tom!” -  até que os ventos da maldade virariam contra na sua varredura.

Tudo porque inventara de entrar no jogo de Pif Paf no lugar mais conhecido na cidade. Era moleque que tentava ser gente grande, inclusive no valor das paradas. Ele achava muito bonito. O cigarro queimando no cinzeiro, enquanto erguia-se o copo de bebida. Quem tinha essa pose, como sua, algo marcante, era seu Alceu.

- Bati – dizia e descansava as cartas na mesa.

Com estilo, dava um derradeiro trago no continental, atirava fora a bagana e puxava o bolo de dinheiro para perto.

 

Depois de frustradas tentativas por carregar pouco dinheiro, agora era a vez de Tom. Mas quanto mais rezava para perder mais ganhava, ganhava de monte; pagava tudo do bom e do melhor. Saía porção de salsichas, azeitonas, quitutes e sardinhas:

- Patrocínio de Tom! – gritavam.

- Bati com essa carta aí – falava baixinho para não frisar adversário derrotado.

Aí tinha que levar as mãos e apanhar como rodo a dinheirama. Diabos, devia era assobiar alguma canção! Mas a imagem que lhe vinha era de medo... do cinturão da velha mãe falando para endireitar-se se queria virar homem.

Naquela toada, deixava ainda de ser vigilante. Nem esse descuido lhe arranhava mais a sorte. No baralho, tinha que estar aceso. ”Está ligado, mano”, como eles diziam. Juntara dinheiro. Fosse um outro, nada aconteceria de estranho. Tinha que dar um jeito. Já escurecia ou era impressão sua? Alguns foram desistindo, até que, assim reduzido o número de participantes, seu Alceu deu um murro na mesa:

- Não adianta, hoje o dia é do menino -  e resolveu pôr fim à peleja.

Após pagamento das despesas de bar, o menino arrumou por maior as cédulas e formou uns pacotinhos, que lhe iam estofando os bolsos.

Saiu com a ideia de passar no monte de alvenarias e esconder os pacotes de dinheiro, senão, ainda que já rapaz, seria alvo fácil das maldades em casa.

Quando se aproximou, foi surpreendido pela polícia, que não deu tempo de ele fazer o drible.

- Pegou uma nota de mil cruzeiros – o delegado explicava a mãe de Tom.

- Natalício, a vítima, disse que Tom só pegou essa nota de mil. Ah, deixou de levar a nota de cinco mil cruzeiros, que estava junto com a outra na mesa, debaixo do rádio de pilha – completava a autoridade.

- E uma banda de melancia chupada – acrescentou um acompanhante da diligência.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Rosa

 


 Edu olhou para as curvas de Rosa e deixou-se perder por um momento de sonhos. Rostinho agradável, de bem desenhado corpo, era uma pequena que, superado o recente divórcio, para um possível relacionamento pedia bons tratos.

 - Mas já está na fase de carência – adiantava sua prima, colega dela de trabalho, ninguém melhor nas informações – e arrematava:

- Descompromissado, de preferência, mas um pouquinho de discrição é melhor.

            Edu se apresentava como candidato natural, enfronhava-se, por vezes, em avançar o sinal, em gestos de simpatia pela boa piada. E Rosa, em igualdade de comportamento, se escondia e voltava a aparecer em lampejos incendiários. Um jogo que só eles entendiam de regras e hora de acabar. Era menina perdida que se achava de graça, espontânea. Para uma saída, ao que se cuidava. Isso tinha que ser captado assim em meio ao marasmo. Sem saber, Edu, em seus movimentos, também sentia que brilhava na passarela dos trintões.  Foi nessa fogueirinha de papel que fizeram o trato de darem uma esticada à cidade vizinha no fim de semana.

            - Quem mais? – quis ela saber.

            - Só nós. Cada um no seu carro, encontramos o pessoal lá. Passo pra te apanhar – combinou Edu.

            Ela sorriu quando Edu disse “só nós”, como houvesse uma complacência entre eles ou aplicação de golpe em alguém, agora por mero zelo, porque já não devia a fdp nenhum – pensou e até ensaiou um passo de dança no ritmo da música ambiente que tocava. Edu achou a dança de uma fofura impar. Então cumprimentou com estampa de alegria o corpinho se mexendo dentro do vestido. Bem que aquela escultura podia estar passando por suas mãos.

Estavam numa mesa de bar principal da cidade, com Rosa sentadinha no colo, quando apareceu um amigo ao pé de ouvido segredando:

            - Melhor sair, que está chegando uma turma que te conhece.

Mas Rosa exalava tanta calma e serenidade, que encobria o susto que ele viesse a sofrer. Também ele gostava de bancar esse lado seu, na distribuição de felicidade,

- Qual é o segredo? – perguntou Rosa, com uma molhada de língua na sua orelha.

Respondeu com um beijo mas, num repente, passou a mão em Rosa e pegou a estrada. Ligou o som e ficou de namoro como garotos tardios. E assim, gastaram as horas da tarde num namoro com o reaquecimento de Rosa, que vibrava:

- Precisava - dizia ao escurecer.

-  Alguém já lhe disse que você se parece com Sônia Braga quando era nova? -  perguntou Edu..

- Você acha?

Edu encostou o veículo num trecho fora da pista. Ao percorrer com a mão por entre a blusa e tocar os seios, sentiu que uma espécie de Hulk estourava em suas calças. O que estaria sucedendo? Também os anos em desuso não deixavam de causar reação nesses moldes. Teve que livrar de roupas que mais enervavam Hulk, para pôr nas coxas de Rosa, que recuou primeiro para poder pegar de mão e conferir com apreço o revoltoso. E, molhada, Rosa deu destino certo ao recém conhecido.

- Que pau, Edu - disse montando de cavalinho.

            Depois, viria na sua mente que um amigo farmacêutico, mais cedo, lhe oferecera um produto de amostra grátis:

            - Tome, experimente você em suas andanças e depois me fale.

sábado, 26 de agosto de 2023

A namoradinha

 


 

Faltava-lhe a namoradinha no desenho de vida de pequeno burguês,  que se projetava então à revelia, conforme imaginavam dele. Após criar o modesto costume de frequentar noites e festas numa rua de residências estudantis, caíra-lhe no costume bom um “embrecho” com uma garota, que virou namoro, de ter começo, meio e... fim. Dessas de presilha ou diadema no cabelo. Sobre o que deveria dizer alguma coisa. Mas o quê mesmo? Fazia quase meio século.

O que se riscara no painel desse tempo, no entanto, haveria de permanecer, como o abraço envolvente que dera em Glória, protegendo-se da chuva, sob a marquise, na Avenida Joana Angélica, numa fresca manhã de 1979. Um quadro de um casual encontro haveria de permanecer na sua parede de lembranças, ele voltando da educação física e ela, de sombrinha, indo para o colégio. Dois jovenzinhos num dia de chuva, que aproveitavam para curtir abraçadinhos, aos beijos e amasso. Silêncio. Barulho normal de rua, tráfego e tiritantes chuviscos no asfalto. Momento que fora concebido pelos deuses, sem ninguém saber. Ela nos seus quinze anos, ele nos seus dezessete. Simples assim, como tudo naquela época, com ajustadas lentes.

O que levara a perder aquela rotina? Andava bem no colégio e vinha normal na relação com Glória. Tinha descanso, conforto, rolé, descoberta, dança e toda alegria de uma manhã que se abria no cotidiano.

- Venha, vai ser legal!

Era uma festinha, em que depois de um papo com os novos amigos, regado a batida de maracujá, amendoim e demais itens da família do suco maguary-kibom, dançavam um bocado e iam os dois para uns amassos de despedida. Glória abria a bolsinha e retirava uns caramelos, queimados, chicletes, o que fosse para passar o tempo mudando de hálito, posição ou assunto.

Ah! Queria pintar outro quadro sobre o “finale”,  mas o que vinha na mente era o fatídico dia dos namorados, do presente que recebera. Agora ele se sacudia. Rompera-se a normalidade.

E tão perturbado que ficou perdido com as palavras dos que se diziam novos amigos. Disseram da vibração dela, quando vira os rapazes da UNE no congresso realizado no Centro de Convenções Salvador, na Bahia, após 15 anos de ditadura.

“Que lindo!” Glória teria gritado no entusiasmo, sem saber que ela estaria sendo filmada pelas lentes da mistura de inveja e donzelice dos novos amigos, firmes na solidariedade de macho. E ele, de igual origem, permitindo aflorar um machismo que guardava imberbe dentro de si.

- Ora, Glória não tem namorado?

Preferiu então dar por acabado o relacionamento, malgrado os panos quentes das amiguinhas de Glória, à porta de sua casa. Melhor que procurasse mascar esse chiclete, como fazia ela nessas ocasiões. Deixaram então de presente uma caneta cor de ouro com gravação Edu & Glória, em 12/06/79.

Depois, quantos vezes não chorara nas noites perdidas no escuro do quarto sem a menina da presilha!

 

 

 



sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Naquelas férias de 80

 


 Naquelas férias de 1980, que Edu se iniciava como rapaz num Chevette seminovo, que o pai recebera em negócios, tornava-se imprescindível uma garota para que se completasse o quadro: filho de família classe média que prestava vestibular na Capital,

A prima vinha de apresentar a vizinha, cabelos de cachinhos pretos, cara de imberbe rebeldia:

- O nome dela é Rose. Vocês já podem conversar. Se forem dar umas voltinhas – relanceou os olhos pelo carrinho marrom estacionado na sombra e arrematou: - é só não irem pra longe.

Edu olhou, envergonhado, diante da garota, que se pretendia no padrão daquele  princípio de década, ainda com muita água por passar debaixo da ponte.

Ciro apareceu para pedir a segunda do seu cigarro Minister, que Edu puxava com classe. Ficou por ali inquieto até lhe pedir a chave do Chevette para um passeio rápido.  Era para um amigo, ele ficaria desfalcado mas só por um pouquinho.

- Não demore não, Ciro – disse, num esboço de autodefesa.            

- Você não vai sair agora, está com Rose aqui no “Embalus”, é o tempo de eu dar um giro no carro.

Bem na hora que rolava Bob Marley, o que levava um grupo de estudantes, da mesma barca de Edu, a bater de leve na mesa, tentando reproduzir o ritmo do reggae:

NO WOMAM, NO CRY

NO WOMAN, NO CRY

 - Passou nas duas: Federal e Católica – conversava alguém de caipirinha à mão apontando um careca no meio da rapaziada.

Bem que poderia ser essa pessoa, que brincava com sorriso escancarado e cercado de admiração pelo seu cabelo raspado, símbolo do sucesso no vestibular, mas não dera, conforme explicação que prestava a Rose;

- No próximo, vou focar melhor – disse ao ouvido dela, que se encolhera.

A inércia de Rose, com seu rostinho branco quase encoberto pelos cachinhos pretos, era concordância e não desprezo.  Era uma namoradeira em potencial, que se ele soltasse o braço que a envolvia, ela arrumava substitutos a um passo adiante. Por isso, trazia-a no grude entre beijinhos e garros. Volta e meia, recebia cumprimento de uma coleguinha que, passando por ali, notava um contentamento aflorado por aquele encaixe:

- Boa, Rose.

Mas quando julgava caminhar nas águas calmas das possibilidades que oferecia uma paquera com Rose, eis que de cá ele viu um moço encarando-o na mesa.  E isso o fazia afastar-se de Rose, que mais uma vez se encolhera e ele tinha que trazê-la mais ao peito.

- É meu irmão, ele é um louco quando bebe; ele me bate – Rose começava a tremer com um choro miúdo e entrecortado.

Não ia tomar satisfação, como pedia a ocasião. Lembrou que quando era criança tinha como desculpa que por estar de banho tomado não iria para a briga. Então, Edu preferiu apostar na autoridade que a prima poderia exercer sobre o rapaz.

- Calma, Rose, vamos esperar minha prima chegar, ela que vai resolver essa parada.

E resolveu, porque chegou a prima e foi até lá falar um bocado de coisas com o mal encarado do irmão bêbado, que, pelo menos, para não estragar de todo o verão, deixou o barzinho sem alardes.

Nesse dia, feliz por ter conhecido Rose, o duro foi ver Ciro chegar com o Chevette já noite andada.

sábado, 29 de julho de 2023

Como pessoas civilizadas

 

 

 - Telefone pra você, Edgar – disse a irmã.

         Era ela, a garota dos tempos de “Alumbramento”, depois de alguns anos, convidando-o para uma parada de buraco no apartamento dela,  que as amigas levariam os refrigerantes. Para os fins-de-semana, Rita inventara de armar esse esquema e, para compor parcerias, lembrou-se de Edgar, se ele topava.

Edgar falou um nhenhenhém, colocou o fone no gancho e retornou sorrindo:

- Ninguém.

- Como “ninguém”, se você estava: -  Claro. Levo o miúdo de frango – Elza imitava Edgar ao telefone.

         Por questão de segurança, Edgar abriu o jogo:

-  É Rita, Ritinha. Vou acabar ficando por lá mesmo. Vou levar uma coisinha pra beliscar. Enquanto se joga baralho...

- Melhor que voltar tarde – respondeu Elza,

Rita já trabalhava e estava quase se formando em Filosofia. O namorado aparecia por vezes. Como demorasse, pensou Edgar, o buraco agora era mais encima.       

                Edgar apanhou o capacete e sumiu pela orla, não sem antes passar na padaria e comprar a porção de miúdo de frango, que carregava no saquinho pendurado no guidão da moto. Em piruetas de contente, que lhe permitia fazer o moço de vinte e poucos anos. Durante o jogo, enquanto bicava o copo de cerveja, gostava de saborear coração de galinha no palito. Podia chover, cair toró.

Tudo isso em busca de uma fantasia besta dele. Imagens de 8ª. série.  Situação a se resolver. Carregava as cenas quentes do maravilhoso e do proibido, que lhe proporcionavam a coragem. Mas agora, passados uns cinco anos, não se podia falar de um desgaste. A imagem estava viva, como comida boa que gruda na panela. O odor estaria presente? O cenário não era mais o de escurinho de cinema. Precisava sentir esse astral de Rita, essa magia. Pensava assim, mas tinha que se policiar nesse detalhe. Não devia se entregar a um devaneio adolescente, ainda mais que, por ouvir dizer, ela era tida como noiva, que só de ouvir tal palavra, antes que se enxergasse o conteúdo, portas se abriam e se fechavam. E seu cavalo, indomável, estaria solto? Pronto para riscar o chão com a pata? Mas até quando?

         Esse grude devia-se mais a essa fantasia de garoto, de sua florescência. E quando ele mergulhava nessas águas não via pessoa, mas tudo o que emergisse e se formasse como orvalho, enquanto ato único e solitário, de pura intimidade pessoal. Sem qualquer outro toque que em Rita o atraísse, ainda mais isso, uma quase irmã, prima, vislumbre de maravilha e pecado. Precisava sossegar o animal que, rédea curta, se esperneava consigo. O medo impunha um demorado silêncio nos chocalhos de animação, mas, por vezes, não tinha como encobrir finos rasgos de um flautim, a um instante de enternecimento.

         Enquanto passava a chuva, iam se deliciando com vinho e cerveja os petiscos preparados rapidamente por Rita, com quem num outro cenário, adiante, com resultado inconseqüente, travaria um duelo,.

         - Ponha aquela ponta de charque de molho, para Edgar, ele gosta – escutou Rita, antes de se recolher, dando ordem a empregada para o dia seguinte,.

         Quase ferrou no sono se ela demorasse mais de chegar, ao calor da cama com seus lençóis.

         - Vamos deixar bem claro, seu Edgar, que vamos dormir juntos mas como pessoas civilizadas, nada dessa mão nas minhas coxas.

         - Então vou dormir em casa – disse Edgar se levantando.

Ele pegou o capacete e caminhou para a porta de saída, pensando que ela ainda diria “Ei! volte aqui, Edgar”, mas não disse, ficando só ele e sua fantasia, no meio da noite, mas num momento de embaraço, quase voltava a propósito do charque, muito do seu agrado, que ia ser preparado no outro dia.

 

domingo, 23 de julho de 2023

Cabelo espetado

 

  Aos olhos assustados de Edu, ela caminhou esbelta. Parecia uma turista europeia, garota loira de cabelo espetado, mochila às costas, pronta para o que fosse rolar. Se Edu a chamasse para uma loucura, ela nem iria pestanejar:

- Vamos! – diria.

– Deixe aí esses “otários” – arremataria ela depois, ao tempo que estendia a mão a Edu.

         Edu tomaria a mão dela e seguiria numa loucura a dois. Passaria no meio de gente de mãos dadas com uma garota do topete verde/amarelo, com pinta de estrangeira. Botava de lado as outras oportunidades que tivera, como quando, após tempo de espera e silêncio, contemplando os livros na estante, ela erguera-se:

         -  Que livro você me indicaria?

      Nessa ocasião ele lia muito, contudo mais direcionado para as aulas que ministrava, sem se ater de imediato ao que podia interessar àquela jovem, que ali se apresentava como uma bomba de efeito retardado.

        - Você gosta mais de quê? – perguntara Edu numa tentativa de serenar o clima.

        Ao que ela, reacendida, devolvera-lhe a incumbência.

        - Eu quero saber de você?

        Era um fardo, mas Edu se desincumbira logo do livro, oferecendo-lhe um volume de contos de ficção cientifica, que ela dissera apreciar. Mas agora ela estava ali na sua sala. Não seria ousadia de sua parte combinar um encontro às claras? Livro emprestado foi uma etapa. Primeiro, era só uma jovem, sobrinha da secretária, não era  de beleza diferente e não tinha esse modo de ser. Não tinha se descoberto ainda como  mulher, de cabelo de estética selvagem.  E lembrar que ela costumava chegar, procurar de maneira aleatória algum livro e posar como se o aguardasse ali no escritório. No final era isso: nada. Ou no mais, conversava sobre devolução de livros e carga de outros. E ele em que mundo andava, no seu entra e sai, enquanto o pé de hibisco só florescia e desabotoava no seu quintal?

         - Estou deixando esse e levando este, ó? – ela costumava dizer e ia embora com um exemplar de ficção.

Mas nessas vezes não havia esse corte de cabelo nem esse jeito de garota européia em passeio pelas serras.