domingo, 26 de maio de 2013

A vez que Tatau ficou fraco da cabeça

A vez que Tatau ficou fraco da cabeça


Seu Zé de dona Dezinha espantava as moscas da prateleira. Assim, ao lado, na outra ponta do balcão, próximo à porta que comunicava venda com residência, dona Dezinha, como de costume, carregava os dias entre o pedalar da máquina de costura e a pausa para ir lá dentro espiar as panelas no fogo. Era perto de meio–dia. Foi quando ali apareceu o roceiro Tatau, um tipo alheio e de poucas palavras.  Pediu sabonete Lux, pasta de dente colgate (imagine!), mais outros trens e coisa e tal.

Seu Zé assoviava uma cantiga qualquer, do tempo dele moço, enquanto ia apanhando os produtos para fazer aquele embrulho, que, ali no comércio, era umas das suas marcas registradas.

Entregou a mercadoria ao freguês e, ainda com a boca em formato de assovio, esperou pacientemente pelo dinheiro, cujo valor  indicava com os dedos. Mas Tatau, como se isso não fosse com ele, simplesmente virou-se para sair. E estacou a um passo e meio, já quase à porta de saída, ante o grito de seu Zé:

- Hei!  O pagamento, moço!

Tatau se voltou e, com a maior naturalidade do mundo, sapecou uma resposta que, dali para frente, o deixaria marcado por toda vida:

- Agora!...Pagar como? se eu venho me deitando com sua mulher  sem nunca ter cobrado nada?

O formato de assovio pareceu escapar pela primeira vez da boca de seu Zé, com o que fulminado por uma descarga elétrica. dona Dezinha, que acabava de cortar nos dentes a linha da costura, arregalou tanto os olhos que lhe caíram os óculos.

- Olhe ela aí, pode perguntar se não é verdade.

Por aquela seu Zé não esperava nunca. Vendo que o homem endoidecera de vez, pediu que se retirasse sem precisar pagar a mercadoria.

- Pode ir embora. Vai... vai... vai... não precisa pagar nada não. Vai... vai... - tangia com a mão.

Dona Dezinha, ranzinzazinha que sempre fora, dava socos na própria mão e dizia:

- Não dá, José, não dá... desaforo... desaforo...

- Dou sim, pode ir... vai... vai.

Tatau apertou contra o peito o embrulho e se retirou, todo posudo, sorriso de descaramento, seguido da molecada que, sabe-se lá como, surgira à beira da porta.

A notícia se espalhou rápido pelos quatro cantos da cidade: Tatau tinha ficado doido. Espalhar é modo de dizer, porque adiante, sempre escoltado pela molecada, Tatau entrou na venda de dona Dircinha, desprevenida, e aprontou mais uma. Pediu um pacote de bolachas palito. A mulher atendeu ao pedido e esperou pelo dinheiro. Tatau ia saindo, quando dona Dircinha (se arrependimento matasse!) gritou acenando com os dedos:

- O dinheiro, seu Tatau...

- Agora?! E ocê acha que eu vou pagar? Quantas vezes eu já te peguei na cama sem cobrar um centavo? Hein? Quantas? Esse molecão mesmo, que tá aí no chão se arrastando, é meu. Eu que fiz.

- Meu Deus! Suma já daqui, Satanás! - gritou dona Dircinha com as mãos no rosto.

A cidade fervilhava em comentários.  Como é que podia de uma hora para outra uma pessoa calada, aparentemente séria, como Tatau, enfraquecer por completo da cabeça?

Foi parar na cadeia, é claro. Cá fora a molecada ensaiava um tímido movimento em favor de Tatau. Mas lá dentro o delegado mandou que dessem umas correadas no descarado.

Antes de levantar a correia, o guarda municipal mandou que Tatau tirasse a roupa. Quando Tatau se despiu, o guarda largou a correia no chão e saiu correndo assustado:

- Cê bst’ôme!


Em termos de correia, a de Tatau era um assombro. 

domingo, 19 de maio de 2013

Um homem e seu cachorro


Um homem e seu cachorro


A imagem que temos de um dos nossos maiores filósofos, Arthur Schopenhuer, é ele ao lado do seu inseparável cão. O nosso amigo, no presente episódio, não é nenhum filósofo, mas deu de adotar um cachorro. Não se sabe, porém, se por recomendação do seu terapeuta ou se por receita própria, dado que é pessoa de boas leituras.

Em seu trabalho, ele via ali um colega com problemas conjugais ao telefone, outro tendo que sair às pressas, se desculpando, porque tinha que ir apanhar os meninos na escola, e outros e mais outros nessa mesma esteira de labuta. E ele sem uma mulher que lhe aporrinhasse por telefone, sem menino na escola, sem sequer cobrador à suas costas. Enfim, isto dia a dia, tornando-se uma normalidade de novos tempos, de que ele não fazia parte. A ponto de se lhe desencadear uma crise por falta de crise.

E ficava tentando agarrar-se a uma ponta qualquer de problemas do cotidiano. Solteiro, sem um pinto em casa com que pudesse preocupar-se para dar água, o caso parecia preocupante, até que teve a idéia do cachorro. Primeiro comprou toda a literatura existente sobre cães e como criá-los, tudo disfarçado sob o argumento da falta de segurança na cidade, o que chegava a convencer a todos, notadamente pelo que se divulga nos programas das rádios locais.

E quando, em seu trabalho, se iniciava a sessão de ocorrências caseiras, ele agora fazia parte do show. Um se queixava da mulher, outros dos filhos, outros da escolinha dos filhos etc., e lá vinha ele com o seu recheio canino:
- ... arrasou os meus canteiros e sujou de terra toda a área da varanda, mas a gente tem que ser tolerante. Fazer o quê, né? Dei-lhe um belo de um banho com shampoo e apliquei-lhe um antipulga – dizia com ar de preocupado feliz, para um certo espanto dos colegas presentes.

E assim foi que se tornou trivial a resposta da funcionária quando se perguntava por ele: “Ele teve que ir ao veterinário” ,ou, por vezes, “ Foi dar ração a Apolo, volta logo”.

Preocupados com essa situação e acostumados a tirarem de letra suas pedras do caminho, os seus colegas voltaram-se para esse caso. Tanto assim que em conversa com o veterinário acabaram descobrindo que o amigo havia passado todo o seu problema para o cachorro. Andava dizendo que o seu cão estava estressado, no que o veterinário diagnosticou o seguinte: excesso de zelo, pois eram muitos os cuidados que ele tinha com o cachorro.

Por isso é que, no final, os colegas não lhe foram solidários, quando apareceu pichado no muro de sua casa:
Troque seu cachorro por uma criança pobre

sábado, 11 de maio de 2013

Sem revelia



Sem revelia


naquele tempo
era como se fosse você o personagem principal
ou o ilustre espectador de primeira fila

tinha sem saber que tinha
não nas mãos
mas tinha
controle remoto da cortina que se abria
e se fechava


naquele tempo
você ainda estava no banho
ou dormia

e tudo esperava
até as estações do ano
para o transcorrer normal do dia

o café aguardava no fogo
o ponto exato
em sua xícara

as manchetes de jornais
eram meras publicações
do que você mais ou menos previa

e você por vezes era instado
a dizer mais coisas
do que viria acontecer

naquele tempo
dia de finados não lhe dizia respeito
e não haveria indiferença
a um minuto de silêncio
por você

Nei George Prado
Candiba, 13ABR1913

sábado, 4 de maio de 2013

O Camelô da Baixa dos Sapateiros



O Camelô da Baixa dos Sapateiros


Alguém já disse ou então colhi de algumas das minhas leituras aqui e ali (que ainda considero poucas e fico com a consciência pesada por causa disso) que apesar do transcorrer do tempo, mudança dos personagens, do espaço, a ação e o enredo sempre trazem em linhas gerais aspectos já experimentados em outras eras por outros e em outras paragens.

Assim é que, podemos dizer, Otávio era uma espécie de Chefe da Guarda Pretoriana da casa de meus pais, políticos, em cidade pequena do sertão da Bahia, etc. E não é que minha mãe, mania de costureira, achou de fazer um uniformezinho verde para ele? Primeiro problema: a molecada passou a apelidá-lo de “Tenente”. Mas até aí o “Tenente” Otávio não se importou porque acabou recebendo aquilo como sinal de respeito e homenagem pela importância que agora assumira perante a comunidade. Ele, que tinha vindo lá da roça.

Isso não ia andar direito, conjecturei. Tinha concluído meu curso na Capital e chegado ali “doutor” em meio a uma fogueira. Minha mãe liga:

-  Corre aqui.

O “Tenente” Otávio queria porque queria furar de faca o candidato da oposição, no que foi dissuadido com muita dificuldade por minha mãe. Motivo: o candidato tinha falado na rua que eu não era doutor de verdade e que meu pai havia comprado o diploma em Salvador. Aquilo para Otávio era o fim do mundo. Quando minha mãe explicou que era mentira, coisa de adversário, para Otávio só a morte para lavar a honra, e ficou chorando porque foi contido no seu ímpeto de vingança.

Fico agora pensando o quanto se dava valor ao diploma. Sabia-se representar a coroação do esforço em busca de conhecimento. Hoje, do jeito que as coisas andam, certo de que conhecimento não se compra mas papel sim, não sei se ninguém faria as vezes do “Tenente” Otávio. Aliás, os “tenentes otávios” estão aí também a comprar patentes mais elevadas. O país vive a sua fase de Revolução Industrial... no setor de diplomas, certificados de conclusão de cursos, monografias, etc. Quer dizer, o dinheiro pode tudo, mas nesse caso específico deixa de ter lastro, que a ciranda do blefe impede que se descubra, e assim “caminha a humanidade”, como estamos vendo.

Lembro que no final dos anos 70, quando estudava em Salvador, o jornal fazia uma denúncia sobre a venda de diplomas para melhorar o currículo do trabalhador em busca de emprego melhor. Assim é que a polícia passou a agir com rigor, pois, segundo se fazia resenha na cidade, até camelô estava vendendo diplomas. Mas calma aí, não era como agora; coisa de conclusão do primário e do ginásio apenas. Era chique se dizer que fulano de tal tinha o ginasial completo. O segundo grau então era um sonho. E olhe que o ginasial daquela época, comparando, era um doutorado perto do segundo grau que existe por aí.

Seu Deolindo era um vendedor já de idade. Seu ponto era na Baixa dos Sapateiros. Sempre que por ali passava parava para curtir o seu modo de anunciar os produtos, geralmente com novidades do momento. Em meio a toda a pressão que estava havendo, não é que Seu Deolindo num daqueles dias acabou sendo preso com produtos e tudo levado pela polícia! Só fomos entender depois e a polícia também. O coitado estava vendendo uns diplomas bonitos, com letras bem desenhadas artisticamente, para que fossem emoldurados, mas oh! que confusão -  eram só uns diplomas desses do dia das mães, que seriam outorgados pelos filhos em sua homenagem.




domingo, 28 de abril de 2013

Segredo




Segredo



O gosto quente do café
não propriamente do aroma
que exala
nem do líquido grosso
goela abaixo
mas do antegozo
de um trago
do cigarro
que põe renovada a manhã


Fumar é tapear manhãs
que passam em nesga de sol
já não se renovam
apenas
no horizonte do lençol

Fumar é um alento
busca incessante
do instrumento
guardado intacto
que a gente nunca soube mesmo
como tocar

Fumar é um lamento

sábado, 20 de abril de 2013

Verão de 81


Verão de 81



Lugar: Salvador/Bahia. Época: verão de 81. Poder-se-ia acrescentar a ocasião: Festa do Rio Vermelho.
Todo mundo estudante, a gente mal podia chegar ao Farol da Barra. Mas a festa era no Rio Vermelho. E naquele dia havia chegado uns amigos. Estudantes em Belo Horizonte. Mas da cidade de Candiba. Inclusive parentes. Questão de honra. Poderíamos, quem sabe, ser depois bem recepcionados em Belo Horizonte. O entusiasmo falava mais que o bolso. Assim, curtir aquela festa não era coisa de muito sacrifício. Morávamos no Campo da Pólvora. Naquele dia, apareceu também no apartamento o amigo Léo. Era da Marinha Mercante. Vez por outra, estando seu navio em Salvador, costumava nos fazer uma visita. Apesar de carioca, tinha certa afinidade com a família por ter avós Candibenses. Coisa do tempo antigo. Sissi de tia Morena, esperto, teve a idéia:
- Bicho, Léo tá aí.
        - E daí?- perguntei.
- Temos moral, pô. É só você pedir o carro emprestado a sua tia na presença de Léo, que a gente vai curtir no Rio Vermelho.
Minha tia era Edna, que morava conosco. O carro era um fusquinha que ela havia adquirido naqueles dias com a ajuda de Osvaldo Dantas, seu pai, e a poupança que mantinha após o emprego recente.
- Você é maluco, Sissi?! Nem se Osvaldo Dantas mandar.
Malandro velho. Sissi foi firme:
- Vai por mim, porra; Léo tem a maior moral quando vem a sua casa.
Resultado: um fusquinha se dirigia ao local da festa com toda turma. Estávamos eu, Sissi, Lucivaldo, Léo e Bié, e toda recomendação de tia Edna.
Gente, carros, luzes e barracas; o som rolando naquele verão de 81. Por recomendação de Sissi resolvemos deixar o carro um pouco distante do local, numa ruazinha enladeirada (nenhuma novidade em se tratando de Salvador). Quando prosseguimos o resto do caminho à pé, inda voltei para trás e verifiquei que o bichinho estava ali bem estacionado e seguro, numa rua aparentemente morta.
Antes de escolhermos a barraca da cervejada, Sissi, o entendido, lembrando-se da recomendação de tia Edna, disse que eu era meio simples e que era melhor deixar a chave do fusca na tiracolo de Léo. Aliás, tiracolo naquela época ainda era moda. Eu também tinha a minha. Como todos apoiaram Sissi, eu não quis contrariar e dei a chave do fusca a Léo. E toma-lhe cerveja. Som, cores, o tempo fluindo sob o toque mágico da festividade do verão.
Foi ainda com o escuro que procuramos voltar para casa. Subimos a ladeira e constatamos felizes que o nosso carrinho se encontrava no mesmo local. O problema foi a chave. No meio da festa, todos cervejados, Léo havia se despedido e fora pegar um táxi até o porto, pois o navio sairia naquele horário. Culpamos Sissi, filho da mãe; a chave deveria ter ficado comigo mesmo.
- Faz ligação direta, porra – disse e se dirigiu à padaria que se abria em frente para tomar mais uma cerveja.
Foi uma trabalheira. Era impossível abrir a porta travada com o vidro suspenso e quebra vento fechado. Mas o santo dos boêmios veio em socorro. Forçamos um pouco o vidro e conseguimos enfiar o braço e abrir a porta. Pequeno dano. Lucivaldo improvisou uma chave de fenda: uma tampa de garrafa amassada. Bié já dormia na sarjeta ao lado. E acordou num grito ao ouvir o ronco do motor. No momento a gente tinha feito a ligação direta e acionava a ignição com um palito de picolé. Sissi pagou apressadamente a cerveja e veio correndo com o sorriso escancarado. Todos no fusca, não pudemos romper mais que um metro. Naquela operação mecânica a direção ficara travada.
Sissi voltou para a cerveja. Bié se ajeitou no banco traseiro e começou a roncar e peidar. Saímos eu e Lucivaldo à procura de um mecânico. Vasculhamos inutilmente as ruas do Rio Vermelho: as poucas oficinas e encontravam fechadas. Retornamos. Sem graça, sentamos ali na calçada vendo o sol invadir o dia, até que na casa ao lado saiu um rapaz ainda bocejando.
- Ô amigo – gritou Lucivaldo, – sabe onde podemos arrumar um mecânico?
- Qual é o problema? Eu sou mecânico. Olhe a placa aí ó – e apontou. Era no local em que se encontrava o fusca e a gente nem tinha dado por isso.
Entregue o caso ao mecânico para destravar a direção do carro, fomos, no horário em que se toma café com leite e pão ajudar Sissi a esvaziar mais cervejas. A essa altura a cidade já retomava a sua rotina normal de trabalho.
Serviço bem feito, ligação direta o fusca estava pronto para seguir viagem de volta. Lá teríamos que dar uma explicação a Edna. Mas isso Sissi tirava de letra. O chato foi ter que deixar as carteiras de identidades com o mecânico, pois o dinheiro curto Sissi tinha estourado na padaria com cervejada.
Ensaindo o discurso que devia ser feito para explicar a Edna a questão do fusca, Sissi tocou a campainha. Nós mais recuados. Quem vem abrir a porta do apartamento? Quem? Sonia Braga? Caetano Veloso? Não. Quem veio abrir a porta foi Léo. O filho da mãe havia perdido o navio e no mesmo táxi retornara e ali encontrava tomando café da manhã com os meninos, Dedê e Juninho, pois tia Edna já estava no seu trabalho.

sábado, 13 de abril de 2013

Encontro


Encontro


1.
as coisas mudas
vazias vazadas
ágrafas palavras
as coisas me batem
grávidas

2.
nectário de vinho
sorver mergulho
olho no olho

3.
as coisas descoisificadas
lamento alento além
plano vôo
e eu passo a mão na cabeça
do Cristo Redentor