domingo, 29 de maio de 2016

Davi





escrever gigante
que foi Davi
e
escrever Davi
que foi gigante

não é o encher d”olhos e de ouvidos
não é o impor aos sentidos

as mãos que se tocam
não se deviam saber
no mesmo caminho
do achado

19/08/2006

quinta-feira, 3 de março de 2016

Nos braços de Morfeu





Um friiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiio, e eu como se estivesse numa cadeira elétrica, me contorcendo, sem achar posição, porque não era caso de postura na poltrona mas de falta de agasalho adequado, até que apareceu a passageira do lado, um senhora de corpo graúdo, mais ou menos da minha idade, com sacos, sacola, de onde retirou uma coberta de lã e se acomodou ritualmente, a deixar que a ponta do algodão que exalava limpeza de guardado me aquecesse parte da perna direita.

Dei uma visualizada geral e verifiquei que quase todos no ônibus se valiam de blusas grossas ou de lençóis. Meus dedos sonhavam com luvas e os sapatos não davam conta dos pés. Apenas minha perna direita parecia curtir uma “amostra grátis” de calor.

- Ô comadre, dá para a senhora me emprestar essa ponta que sobra do cobertor?

Era como se pedisse um copo d”água, estando com sede. Reconheceu, a seu modo, a minha situação de emergência, de forma que, com naturalidade, me vi de repente também protegido daquela friagem, a ponto de, sem ter onde descansar o braço esquerdo senão como que num abraço leve de quem se prepara para dormir aconchegado, assim fazer, num avanço de sinal, para aí sim ouvir um meio protesto da senhora, como que por cautela:

- Ei, eu sou casada!

- Eu também sou...e daí? Só vamos dormir – sussurrei com sono, fincando a bandeira em terreno conquistado, de maneira que ela em olhada ligeira para os lados apenas se resignou e acabou arrastada para os braços de Morfeu.

“É no andar da carruagem que as cabaças se ajeitam”, lembrei-me desse dito popular pensando em quanto, na viagem que se presumia árdua, alinhavada estava a garantia de uma tranquilidade de bebê de colo que me devolveu à realidade após umas oito horas de estrada, com presença tênue do Sol anunciando a manhã.

Ali estávamos, enfim, aos cuidados com os pertences para o desembarque na rodoviária, quando, recebido por minha mulher, que eu iria apresentar à minha companheira de viagem, em meio ao movimento de quem chega e de quem sai, já não mais a encontrei – a mulher do cobertor tinha desaparecido, como um anjo da guarda talvez.

                                                                       03.03.2016

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Sorriso de Sol



1.
segue a íntima música
desde a nascente da água fresca
por entre folhagens e pedras
onde um sapo faz xixi

2.
na moldura desse tempo
que se pinta em cores várias
ainda cabe o sonho do menino
que dava “bênção , pai”,  bênção, mãe”
e, mãos postas, rezava antes de dormir

3.
em sorriso de sol
vejo o papa franciscando


15.02.16

sábado, 21 de novembro de 2015

não mais se espera

não mais se espera
o tempo é um clique
de controle remoto
em punho

a conta do mercado já não é mais
na ponta do lápis
com retirada de prova

é débito automático de suor
com seu cartão de retalhar até a carne

não  mais se espera
anunciaram um milho
cuja semente é improdutiva

vi uns frangos em série
numa granja
comendo maquinalmente sua ração
antes de serem guilhotinados

não  mais se espera
e por não mais se esperar
é que há
em cada esquina
um bezerro de ouro

Rua Virgiliana Reis, s/n, em 20/11/2015

domingo, 1 de novembro de 2015

Canção para Monique

ah! tanta coisa lá dentro
destes olhos graúdos
teus

uma pétala de rosa
apanhada ao acaso

um livro que voa
um barco à toa
na linha do vento

o café fumegante
que manchava de leve
o amanhã de ontem

e a voz violino
número 5
de as bachianas 
brasileiras


Nei George
VILA SERENA(BA), 29/10/15.

domingo, 23 de agosto de 2015

Pedras


Pedras 

Nei George Prado

há muito que aprender com as pedras
as rosas falaram demais
e inutilmente

a pedra bruta
a pedra muda
de olhar imbecil

sim. Esta mesma
as rosas não mais atraem
e atrair não dá passagem ida-e-volta com despesas pagas a ninguém

nem atrair nem dizer
mas deixar que o mutismo
de uma rocha
seja por si só – sua postura de pedra
tudo aquilo que as rosas em vão
tentaram murmurar
com abraços e tapinhas no ombro
com olhar alcoviteiro

nem abraços
que as rochas não abraçam
é um calor pedra
que petrifica o abstrato de um anseio

nem masturbar anseios
dizendo que é poesia
a pedra não cobra cachê

nem anseio
a pedra sabe a direção
sua arma – esse mutismo, essa estaticidade
na beira da estrada
espreitando
insuspeita...

os idiotas, esses que trazem uma flor à mão
que girem ao seu redor
procurando o sanitário
onde fica tal seção
tal rua... etc.  e tal

a estrada afinal
é livre...



                                                           Salvador, 11-09-82

sexta-feira, 31 de julho de 2015

O problema é que amanhã é hoje

2.
o problema é que amanhã é hoje
e você não terminou de escrever o poema
não lançou o livro
não passou da primeira página da obra de Marcel Proust
não cumpriu os combinados
não comeu a menina
não visitou os velhos
não viajou para a Europa

o problema é que amanhã é ontem
e um carro buzina lá fora
você não retocou a maquiagem

21.07.15


Nei George Prado