quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Arrebol

 


Há um banco comprido de madeira à beira de uma rua tranquila.
Está postado ali sem se mover o dia inteiro.
Suas pernas não arredariam um passo sequer mesmo sob açoite,

(...)

E o banco suporta sozinho as horas insossas, longe da rua e das nuvens
[por quais anela.
Até a fria e zelosa corrente de ferro suporta as horas enferrujadas,
[segurando-se firme nas pernas do banco.
(Ki  Kim Taec)

1.

já não tenho pressa de viver.

conservo o ânimo

que ao tempo não se dá corda

não existe mais

descampado sem fim.

2.

o bom dia matinal pelas janelas também vale para o boa tarde

tardes que não passam

só existem

como um costume muito antigo

desbotado exibido em shopings.

3.

hoje o dia se encontra com a noite sem sortilégio algum

em plena luz do dia ou da noite

tratando de amor

4.

que ao menos se renova sem que ninguém se dê por isso

como  estação do ano que a gente vê iniciar-se

nas folhas caídas ao chão

nascidas dos brotos que enfeitam uma manhã de sol

pelos caminhos ao tudo/nada

5.

da chuva de cântaros

ou do sol em ardência na pele e nas coisas

na sensação do granizo que esquenta o chá das seis

nos cobertores aquecidos aos pés da imaginária lareira

como as neves de algodão que pomos na árvore de Natal

fim e  início

claro/escuro

arrebol da vida.

 6.

agora vou escarafunchar os mínimos

detalhes da coisa tornada obsoleta

derradeira partícula a pretender alguma aproximação com outra, 

esse trisco que faltava para dar a faísca –

fina cócega do nem chegar a ser.

7.

Passo a passo vou andando nessa trilha de quilômetros.

Talvez eu nem chegue lá, porquanto lá estou.

 

NeiGeorgePrado

4/12/21

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Nívea

 


 

         Nívia era o nome dela.  Miudinha. Melhor, concentrado feito ovo de cocá. Só que na ocasião eu não sabia do poder do ovo de cocá. Tamanho era documento para mim. Era uma besta. Sérgio Ricardo, mais tímido que eu, foi quem me despertou:

            - Por que você não namora Nìvea? Soube que ela quer paquerar você?

        Estava escolhendo e, emaranhado em sonhos, queria a melhor.  Depois nem quis apurar o que Sérgio dissera. Podia ter falado de sacanagem.  Certo que fiquei meio assuntando em Nívea, que tinha olhos graúdos, amendoados e cabelos escuros.

Corria o ano de 76 e eu parado, descobrindo as novidades em volta. Era meu primeiro ano na capital. Apenas um rapaz latino americano, como dizia nos rádios a canção. Volvi meus olhos para Antônia, que era prima de Francklin e andava com a gente, estilo moleque de rua, falando gírias e o escambau, como diria Paulo, colega, CDF, paulista de Uberaba, para onde voltaria e faria odontologia.

Olhando agora, penso que Sérgio Ricardo, hoje agrônomo, me dera um presente, que eu, enfarruscado, recusei. Nívea era bonita, tamanho decente, e carregava olhos amendoados. Mas a gente dá um salto e vai para outra, igualmente pequena, cara de desabusada, que era Gal, morena de bronzeado forte, dessas que ao mínimo descuido soltavam tinta da pele. Pelo menos na minha imaginação.  Estive na casa dela fazendo um trabalho de grupo. Tinha preferência. Mas não prosperou. Ficamos só na paquera. E no ano em que faríamos vestibular, ela me assustou quando disse no seco:

- Vou fazer pra matemática.

Eu era de Humanas. Mas no nosso ciclo, Leila Fogaça, uma potiguar loirinha e de brilho nos esportes, também era da minha área, hoje uma desembargadora do TRT. E tinha mesmo que ser, porque era aplicada nos estudos. Estilo de Paulo,  que me chamou atenção para a cor de rosa da calcinha que ela usava com o uniforme modelo cocota. Desculpe-nos, Léa, por este ato de  adolescente.

Marilene, essa era do amor platônico. Guitarrista, dançarina e uma ginasta de primeira, com quem tinha o prazer de jogar volebol. Era 10 em tudo, mais que Paulo, nosso representante. Menina que dava gosto aos pais, que deviam morar retirado, longe, noutra cidade, em Recife, por exemplo. Mas ela e a colega de sentarem juntas moravam lá na escola (semi-internato). Com tanto talento, o que  andaram fazendo essas meninas?

Meu boletim dava dó de ver, tantas eram as notas baixas, que eu não dormia bem, pensando que o mundo fosse acabar no fim do ano. Tive que fazer um enorme esforço e passar nas provas finais, tantas eram as chances: recuperação, re-recuperação e por fim a 2ª. Época. Tive que me dobrar nos estudos, que com muita reza acabei tirando um 10 em Português, que serviu para os colegas estudarem, e começaria  ano seguinte como um bom aluno.

Chegamos, por fim, ao fim de 76, quando deixaram o barco Frank, a prima Antônia e o maluco do norte americano Autram. Paulo conseguiu de forma tímida me avisar que seria realizada festa de formatura num clube de nome Campomar, quando eu já estaria de  férias em Candiba.

Ah, Nívia, de tiara descolada, fiquei sem saber ao certo se o que Sergio dissera era verdade. Melhor a dúvida, calculo.

 

Candiba/BA, 22/12/21

sábado, 18 de dezembro de 2021

Crônica da reinauguração da minha (in)dependência

 


     Resolvi fazer uma inauguração da reforma do meu escritório, no quintal de casa. Apareceram convidados. Digo apareceram porque, com filhos e netos morando em outra cidade, uma mulher que não fica em casa, não havia previsão certa de fãs. Assim, contentei-me com os acontecimentos naturais (lato sensu).

Sua excelência Negão, gato preto mais descolado do planeta, adentrou o recinto e ficou sobre uma almofada. Apareceu sua mãe Bruce (com sua mala de carregar filhotes), acompanhada do imão de Negão,  Beiija, que é branco, confundia-se com a mãe. Sem contar os novatos, Rildo e Rita, jovens gatos sensação do momento. Para pirraçar, Tiagão, um cachorro salsicha,  basset, posto para fora, mas soberano na sua arredia insignificância, com suas filhas cadelas de incestuoso relacionamento.

Nova tinta, novo piso, teto de gesso, estante com livros arrumados, mesa perto da janela lateral, que  achei de abrir, com direito ao  frescor da manhã de domingo e farfalhar de folhas; canteiro com terra fofa aguardando a grama, que  ainda não viera mas a esposa mandara mensagem para dizer que estaria a caminho.

Programado para breve o funcionamento de um serviço de café, espaço para uma máquina de preparo do nescafé e o chá mate leão como opção.

            Numa manhã assim, de calma, dava até para aparecer um vendedor de tapete, de nacionalidade portuguesa, como já ocorrera, e de novo falar admirado:

            - Lá para nós, daria para morar uma outra família.

Bom, não sabe ele que na verdade mora uma família. Acabo de criar minha (in)dependência habitacional. Ligo meus computadores e me conecto com o mundo. Viagem no tempo e no espaço. Escreverei minhas crônicas, meus poemas e lerei meus livros. De vez em guando minha mulher dará suas graças, como agora, nesta manhã, trazendo a grama que faltava. Saio na janela para ver e ergo o grito, de há muito guardado no peito, antes que a chuva faça sua saudação:

 - Independência ou morte!

sábado, 4 de dezembro de 2021

O café


1.

Aos cinqüenta e tantos anos,

depois de cachaçadas e raparigagens,

desci de meu cavalo alto.

 

2.

Arriei  malas

assentada poeira das imensas (in)certezas

de dias idos e vividos,

 

3.

para assoprar com você a xícara

do café de Barra da Estiva

tantas vezes apressadamente engolido

sem o mínimo de atenção devida.

 

sábado, 27 de novembro de 2021

Quando morre uma parte de mim

 



Meus companheiros de infância, queria todos vivos. Um mora aqui, outro acolá, mas vivos, que a hora que a gente quiser se reúne. Amigo de infância é mais que parente. É parte da gente, ainda que esteja distante, casou, ficou velho, imprestável, mas ainda palpita num último sopro de vida.

È uma falta, como parte. E nós sentimos. No final, o que enterram de nós é só um pouco do que restou. E há aqueles com quem nem chegamos a relacionar mas sabíamos da sua existência. Mesma coisa. Hoje me chega a notícia de que um AVC pegou Roberto de Preta desprevenido.

Para quem não sabe, ele se chamava Roberto Carlos, homenagem ao cantor, que fazia grande sucesso na época. Roberto não fizera sucesso nenhum, senão nas pequeninas coisas da sua vida diária. Trabalhador braçal, mas dado também a uma roda de pandeiro e violão. Era irmão de Diquinho, cabeleireiro dos bons, criado por Zefa Parteira; de Dalva, menina criada por Virgulina. Ambos filhos de uma Lavadeira, Preta Rosa Pé de Onça, que, na verdade, se chamava Carmelita Rosa de Jesus.  O pai dele era Zé Mocó.

Era meu companheiro de infância. Nunca brincamos juntos, nem ele me deu algum trabalho. Mas sabia de sua existência.

         Tchau, Roberto.

 

Candiba/BA, 27/11/2021

NeiGeorgePrado

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

FRUTA AMOITADA

 

 1.

Era tanto o desejo calado sobre a garota

que ela amadureceu meio moça

como fruta amoitada

descoberta no quintal.

 

2.

Viver de acordo com as estações do ano

se faz calor, ponha o short;

se faz frio, um agasalho com todos os aparatos

de um lord.

 

3.

A gente vai vencendo todas as intempéries

segura no ritmo

não descarrilamento da primavera

 

4.

que você foi um dia...

(flores se abrindo)

preservação de segredos

nossos.

16/11/21