domingo, 20 de fevereiro de 2022

Versos intimistas


 

 

6.

Um cheiro que quase se dá e se entrega,

olor de florzinha rocha num arbusto

de quintal.

 

7.

Em longínquo campo, uma flor se ergue e se impõe

mas não se entrega na cor

seu reino, sua glória

flor do algodoal.

 

8.

Seus lábios não dizem o quê

mas nossa música, inaudível, se ouve

tocar.

 

9.

Somos faísca de vida que se escapa

quando se a tem

na palma de mão que mal se vê

esboçar.

 

10.

E daí essa fluência

de poesia

que não se farta, não se cansa

malgrado findar-se o dia.

 

 

7.02.22

NeiGeorgePrado


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Foda-se

 

De repente descobrira-se ali, rua larga e esburacada, mãos dadas com uma garota, uma gordinha, de rosto agradável, como se dizia em família. Caminhava numa leveza de descuidados encontrões, que lhe fazia percorrer ligeira tesão. Vivia um mundo onírico. Mas deu para sentir real um abraço de corpo e alma que lhe brotava como futura lembrança aquela completude -  tinha no que pegar. E pelo menos guardar o olfato do que exalava de refrescante e bom. Assegurado conforto, foi no ouvido dela e sussurrou:

- Lindo instante de existência. Daqui a pouco nós nem nos sabemos mais.

- Foda-se!

Agora que não sabia mesmo. Nem para dizer o nome. A turma se ajeitara. Final de farra, era o que lhe restara: a gordinha. Que, de quebra, era até... bonita.

“Foda-se!” pensou igual. Depois, no carro, negócio de levar a garota: “Entra aqui, pare ali”.

- Portão verde! gritou no seu ouvido.

- Sua casa? perguntou com seu fio de voz.

- De uma amiga, respondeu na mesma firmeza a garota.

Era de manhãzinha. Frio de início do dia e fim de uma madrugada pelos botecos da cidade.

- Vamos tomar café na padaria? propunha ela apontando uma porta que timidamente se abria ainda com escuro.

Dava para encarar. Mas aí ela espionou e viu mesas organizadas. Mudou de preferência:

- Vamos mais é tomar uma cerveja bem gelada... no capricho, disse e bateu na mesa.

Aí percebeu que ia começar outra cachaçada, sob o comando dela. Aliás, ela encampava esse jeito de mandona.

- Vamos até finalizar com um namoro, ousou falar no esteira desse clima .

- Vamos até finalizar com um namoro, repetiu ela. sentando-se no seu colo para acentuar esse entendimento.

            Então Miguel viu que era bom. Abraçou a gordinha e ficaram nesse rala-rala um par de horas, enquanto enxugava cervejas e jogavam conversa fora.

            - Hora de café já passou, constatou,  conformando-se Miguel. - Como dizia um amigo de pescaria: “escovar os dentes”, e virava o copo de cerveja.

- Vamos escovar os dentes! ela como que enxugou metade do copo.

Sentiu o volume na calça aumentar quando ela se levantou e voltou a sentar-se bruscamente. Por duas vezes. Acabou puxando-a para um beijo de abertura, com plano de nessa quentura ligar também as idéias.

Não era “a gordinha” não, a garota arretada tinha nome com certeza, mas de quem se perdera contato depois da pandemia.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O Papa no Jornal Nacional e eu tomando café

 


 A vida nos ensina a simplicidade. Esfrega em nossa cara todo dia. Antes, na minha irrequietude de jovem, não tinha tempo para essas bizarrices. Imagine, tanto tínhamos para ver e ouvir!

O Jornal Nacional, símbolo consagrado de nosso jornalismo, mostrou ontem uma matéria com o Papa. Nada de especial, uma entrevista distraída com o Papa. Falava da Amazônia, do lixo dos plásticos que se acumulam nos rios, que estão morrendo. Com o bom humor do Santo Papa, abençoando uma loja de amigos numa rua de Roma. Como homem comum, que chegou a dispensar o apartamento papal para morar.  

Me fez lembrar de meu avô, Osvaldo Dantas, e suas bizarrices. Isso nos remetem a uma reflexão. Depois de apresentação da matéria, em que há referência ao poeta Vinicius de Morais e ao cantor Roberto Carlos, ambos brasileiros, e aí já agitamos o  bairrismo que dorme dentro da gente, pouco nos dando com o fato de serem eles, graças a arte, também personalidades do mundo.

Tomo meu café da Barra da Estiva, no quintal de casa, e, dado por satisfeito por saber de tantas informações importantes, tiro simbolicamente o chapéu e digo Boa Noite, William Boner. Meu avô Osvaldo Dantas era quem respondia boa noite ao locutor de então, Cid Moreira, e quando alguém na sala lhe cortava, “oh vovô, não precisa dizer não”, ele emendava: “Como não, meu filho, o homem deu notícia do mundo inteiro (para o nosso conforto), não custa nada responder o   “boa noite”.

Assim sou eu agora. Não custa nada, descobri que a gente responde para gente mesmo, o que, na lição do Papa, é bom para o espírito:

- Boa noite.

Simples.

 

domingo, 6 de fevereiro de 2022

O menino que trazia Bernardo Élis na bagagem

 

  

Todos apreensivos no pátio do ginásio, veio o diretor até o quadro do mural e anunciou em voz alta o primeiro colocado na lista dos aprovados para aquele ano de 1973. O nome do aluno não foi surpresa mas a forma do anúncio sim, mal acostumados que estávamos com presepadas de aluno.

“Quem é Orlando Prado Martins?” perguntou o mestre com autoridade. “Diga a ele que meus parabéns: nota oito e meio!” concluiu o mestre depois de espalhar o terror, motivo de logo haver-se formado um aglomerado de meninos em frente ao mural onde era afixada a relação de aprovados.

Era um garoto diferente. Lando de seu Cizínio (no tempo em que todo mundo tinha seu dono), carregava um elevado grau de perspicácia. Colega do curso da admissão, mas tinha vindo de Goiás,  para  morar com uma irmã mais velha, e já matriculara no quinto ano primário, ao contrário de nós, que ralávamos no quarto ano da professora Elisabete. Um menino que já trazia na bagagem Bernardo Élis e muito choro escondido de órfão aos nove, dez anos.

Logo enturmara-se no meio de amigos de rua, em brincadeiras próprias da idade, de pelada, bola de gude, esconde-esconde,  e troca de novidades, como revistinhas e informações de cinema e circo. Nessas aventuras, era meu parceiro de vestir calça boca de sino e tirar retrato no jardim da pracinha da igreja com pose de playboy.

- Somos primos,  conversávamos olhando num monóculo os primos na moda, no meio da jardinagem de altas gramas.

- Essa moda nunca vai acabar, Cola.

- É a melhor, não está vendo? e maravilhávamos.

Lando era um viciado, essa a palavra, em leitura de revistinhas e livros. Principalmente a de Tex, que não me fascinava, como as de Fantasma, Recruta Zero e Bolota. Fazíamos a troca de gibis então. Nesse negócio de permuta, ouvi certa vez, confuso, de um dos garotos:

- Troquei com Dominguim de Mariinha.

Confuso mas ainda sem rigidez, fui investigar e descobri. Dominguinho, que morava no beco, filho de pais alcoólatras, era literalmente um analfabeto de pai e mãe, mas um moleque do seu tempo, ao seu modo, bom em tudo, no estilingue (parecia uma borracha diferente – o estilingue), na birosca (barulho de bolas azulzinhas no bolso do calção, que hoje seria uma pochete), na natação em lagoas e represas...

- Da turma mesmo só Dominguim atravessou a nado (a represa), dizia-se.

...  na ponta esquerda (batia um peito de pé que dava gosto), na mesinha de sinuca (porque aprendi a jogar com a mão esquerda apesar de destro) e nos trejeitos de artistas de  circo (o trapezista), de cinema (o último a se render),  mas fora da escola, na vida,  que queria manter vivo seu interesse em meio aos meninos letrados da turma.

Para ele, não era muito difícil separar um pouco do seu dinheirinho que conseguia na batalha semanal da caixa de engraxate. Destiná-lo à aquisição de revistinhas infantis de Cavaleiro Negro e Tex e manter aquele círculo de leitura entre amigos era uma prazer enorme. Ninguém notou sua discreta saída, só eu guardei, meio enevoado, esse segredo de menino: Dominguinho comprava as revistas só pelo prazer de participar do círculo de amigos. Uma forma de ser gente e ir-se firmando como tal. Nesse embalo, alguém deve ter dado algum repelão nele para que ele saísse fora, porque tinha esse prazer de emprestar, de ser útil por nós, como quem oferece a melhor fruta do pé, sem estar bichada, perfeita, de Londres, como diria uma amiga de farra, anos mais tarde.

Mas eu quero falar de Lando de seu Sizinio, com quem a gente comentava os filmes da semana, que, encantado, acabou dando notícia da descoberta de um verdadeiro tesouro.

Duas malas a propósito. Cheiinhas de revistas, até de um tal de Buck Jones, Roy Rogers, e muitas de Cavaleiro Negro. Velhas e com cheiro gostoso de aventuras pelo mundo do desconhecido.

- De Delê, amigo de meu irmão mais velho. Seu filho que abriu as malas. Vou pegando aos poucos, e exibiu uma de Buck Jones.

Um dia, tinha acabado de chegar de férias e vi Lando passando na frente de casa.

- Vamos entrar pra ver minhas revistinhas novas que eu trouxe de Montes Claros.

Vinha de férias, como presente pela aprovação na prova do curso de admissão, com a média de cinco vírgula dois, ao que Lando, que passara com oito e meio, replicara:

- Lá em casa dizem que eu não fiz mais que minha obrigação.

Lando, maravilhado, grudou logo uma e pôs-se a ler, que chegou até a deitar-se no sofá para, ao cabo de certo tempo de entretenimento, botar a mão na cabeça, sinalizando desespero:

- Pô, tenho que ir ali comprar um requeijão para o café da tarde. Esqueci, Minha irmã me mata, disse e saiu em disparada.

 Mas quando lá chegou, o moço informou que seu cunhado, não agüentando esperar, tinha ido atrás e comprado o requeijão.

Lando e Dominguim, meus heróis de infância, deixo aqui um abraço.

 

 

 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Arrebol

 


Há um banco comprido de madeira à beira de uma rua tranquila.
Está postado ali sem se mover o dia inteiro.
Suas pernas não arredariam um passo sequer mesmo sob açoite,

(...)

E o banco suporta sozinho as horas insossas, longe da rua e das nuvens
[por quais anela.
Até a fria e zelosa corrente de ferro suporta as horas enferrujadas,
[segurando-se firme nas pernas do banco.
(Ki  Kim Taec)

1.

já não tenho pressa de viver.

conservo o ânimo

que ao tempo não se dá corda

não existe mais

descampado sem fim.

2.

o bom dia matinal pelas janelas também vale para o boa tarde

tardes que não passam

só existem

como um costume muito antigo

desbotado exibido em shopings.

3.

hoje o dia se encontra com a noite sem sortilégio algum

em plena luz do dia ou da noite

tratando de amor

4.

que ao menos se renova sem que ninguém se dê por isso

como  estação do ano que a gente vê iniciar-se

nas folhas caídas ao chão

nascidas dos brotos que enfeitam uma manhã de sol

pelos caminhos ao tudo/nada

5.

da chuva de cântaros

ou do sol em ardência na pele e nas coisas

na sensação do granizo que esquenta o chá das seis

nos cobertores aquecidos aos pés da imaginária lareira

como as neves de algodão que pomos na árvore de Natal

fim e  início

claro/escuro

arrebol da vida.

 6.

agora vou escarafunchar os mínimos

detalhes da coisa tornada obsoleta

derradeira partícula a pretender alguma aproximação com outra, 

esse trisco que faltava para dar a faísca –

fina cócega do nem chegar a ser.

7.

Passo a passo vou andando nessa trilha de quilômetros.

Talvez eu nem chegue lá, porquanto lá estou.

 

NeiGeorgePrado

4/12/21

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Nívea

 


 

         Nívia era o nome dela.  Miudinha. Melhor, concentrado feito ovo de cocá. Só que na ocasião eu não sabia do poder do ovo de cocá. Tamanho era documento para mim. Era uma besta. Sérgio Ricardo, mais tímido que eu, foi quem me despertou:

            - Por que você não namora Nìvea? Soube que ela quer paquerar você?

        Estava escolhendo e, emaranhado em sonhos, queria a melhor.  Depois nem quis apurar o que Sérgio dissera. Podia ter falado de sacanagem.  Certo que fiquei meio assuntando em Nívea, que tinha olhos graúdos, amendoados e cabelos escuros.

Corria o ano de 76 e eu parado, descobrindo as novidades em volta. Era meu primeiro ano na capital. Apenas um rapaz latino americano, como dizia nos rádios a canção. Volvi meus olhos para Antônia, que era prima de Francklin e andava com a gente, estilo moleque de rua, falando gírias e o escambau, como diria Paulo, colega, CDF, paulista de Uberaba, para onde voltaria e faria odontologia.

Olhando agora, penso que Sérgio Ricardo, hoje agrônomo, me dera um presente, que eu, enfarruscado, recusei. Nívea era bonita, tamanho decente, e carregava olhos amendoados. Mas a gente dá um salto e vai para outra, igualmente pequena, cara de desabusada, que era Gal, morena de bronzeado forte, dessas que ao mínimo descuido soltavam tinta da pele. Pelo menos na minha imaginação.  Estive na casa dela fazendo um trabalho de grupo. Tinha preferência. Mas não prosperou. Ficamos só na paquera. E no ano em que faríamos vestibular, ela me assustou quando disse no seco:

- Vou fazer pra matemática.

Eu era de Humanas. Mas no nosso ciclo, Leila Fogaça, uma potiguar loirinha e de brilho nos esportes, também era da minha área, hoje uma desembargadora do TRT. E tinha mesmo que ser, porque era aplicada nos estudos. Estilo de Paulo,  que me chamou atenção para a cor de rosa da calcinha que ela usava com o uniforme modelo cocota. Desculpe-nos, Léa, por este ato de  adolescente.

Marilene, essa era do amor platônico. Guitarrista, dançarina e uma ginasta de primeira, com quem tinha o prazer de jogar volebol. Era 10 em tudo, mais que Paulo, nosso representante. Menina que dava gosto aos pais, que deviam morar retirado, longe, noutra cidade, em Recife, por exemplo. Mas ela e a colega de sentarem juntas moravam lá na escola (semi-internato). Com tanto talento, o que  andaram fazendo essas meninas?

Meu boletim dava dó de ver, tantas eram as notas baixas, que eu não dormia bem, pensando que o mundo fosse acabar no fim do ano. Tive que fazer um enorme esforço e passar nas provas finais, tantas eram as chances: recuperação, re-recuperação e por fim a 2ª. Época. Tive que me dobrar nos estudos, que com muita reza acabei tirando um 10 em Português, que serviu para os colegas estudarem, e começaria  ano seguinte como um bom aluno.

Chegamos, por fim, ao fim de 76, quando deixaram o barco Frank, a prima Antônia e o maluco do norte americano Autram. Paulo conseguiu de forma tímida me avisar que seria realizada festa de formatura num clube de nome Campomar, quando eu já estaria de  férias em Candiba.

Ah, Nívia, de tiara descolada, fiquei sem saber ao certo se o que Sergio dissera era verdade. Melhor a dúvida, calculo.

 

Candiba/BA, 22/12/21

sábado, 18 de dezembro de 2021

Crônica da reinauguração da minha (in)dependência

 


     Resolvi fazer uma inauguração da reforma do meu escritório, no quintal de casa. Apareceram convidados. Digo apareceram porque, com filhos e netos morando em outra cidade, uma mulher que não fica em casa, não havia previsão certa de fãs. Assim, contentei-me com os acontecimentos naturais (lato sensu).

Sua excelência Negão, gato preto mais descolado do planeta, adentrou o recinto e ficou sobre uma almofada. Apareceu sua mãe Bruce (com sua mala de carregar filhotes), acompanhada do imão de Negão,  Beiija, que é branco, confundia-se com a mãe. Sem contar os novatos, Rildo e Rita, jovens gatos sensação do momento. Para pirraçar, Tiagão, um cachorro salsicha,  basset, posto para fora, mas soberano na sua arredia insignificância, com suas filhas cadelas de incestuoso relacionamento.

Nova tinta, novo piso, teto de gesso, estante com livros arrumados, mesa perto da janela lateral, que  achei de abrir, com direito ao  frescor da manhã de domingo e farfalhar de folhas; canteiro com terra fofa aguardando a grama, que  ainda não viera mas a esposa mandara mensagem para dizer que estaria a caminho.

Programado para breve o funcionamento de um serviço de café, espaço para uma máquina de preparo do nescafé e o chá mate leão como opção.

            Numa manhã assim, de calma, dava até para aparecer um vendedor de tapete, de nacionalidade portuguesa, como já ocorrera, e de novo falar admirado:

            - Lá para nós, daria para morar uma outra família.

Bom, não sabe ele que na verdade mora uma família. Acabo de criar minha (in)dependência habitacional. Ligo meus computadores e me conecto com o mundo. Viagem no tempo e no espaço. Escreverei minhas crônicas, meus poemas e lerei meus livros. De vez em guando minha mulher dará suas graças, como agora, nesta manhã, trazendo a grama que faltava. Saio na janela para ver e ergo o grito, de há muito guardado no peito, antes que a chuva faça sua saudação:

 - Independência ou morte!