sábado, 25 de março de 2023

Como no último dia de aula

 


            Queria sua chegada com espírito de liberdade de menino em último dia de aula e certeza de prazo longo para ajustes das pendências que decerto ficariam.  Mas, de férias, estava chegando por baixo, porque, para poder passar teve que se ralar na prova de segunda época, O humor era zero. Tratava as pessoas com rispidez, até quando o primo veio lhe falar, num sinal de agrado e respeito, que seu time, o Vasco da Gama, fora campeão;

- Ninguém quer saber disso, otário – ralhava com o primo, tentando encontrar um buraco e se esconder com o rosto marcado de espinhas.

- Sua mãe está te chamando. Pra te mostrar roupa nova – mudava de assunto, na  insistência com querer agradar.

No quarto, sua mãe abria a cortina para que uma nesga de sol penetrasse e a vida explodisse em pontos positivos de galhos. Para completar esse desenho, a manhã se enchia com pássaros cantarolando.

 - Essa calça de brim cor de chumbo cairá bem com essa camisa de cassa.

Ficaria lindo mas com quem iria ser a estréia sua mãe não dissera, já que, vendo-o borocoxô, tentava levantar sua bola.

- Meu filho, você quer um chocolate?

Disse que sim. Aceitava a boa vontade da mãe nessa tentativa de mudar de astral.

- Vai ficar lindo com essa camisa de cassa.

Passou também a loção pós barba e sorriu para a mãe, com quem resolvia compartilhar essa pequena alegria. Não estava próximo do espírito de liberdade de menino em fim de aula mas caminhava para isso.

- Não está animado?

- Pouco.

- Você passou, isso que importa. Ainda tem um resto das férias.

- Quase morro, mas estou aqui são e salvo,  para pegar firme o ano de 77.  Agora não perderei o trilho.

- Isso, meu filho. Assim que se fala. Você perdeu seu futebol, suas novelas, só estudando, mas venceu uma etapa.

Afastar-se do futsal fora uma tremenda punição.  Dias de “babas” que se foram, sem sua presença. Ficar de fora dos encontros, das festinhas... Voltava agora para os personagens.  Difícil fora viver longe do mundo fictício. Às vezes o desejo de encontrar esse conforto era tanto que se imaginava apertando a tecla correspondente ao play e se deixando levar. Emaranhava-se em sonhos novelescos. Deles saía num ritmo mágico procurando pelos personagens em suas andanças. No momento estava ali, final de férias, se espremendo no quarto, sem coragem de enfiar a cara na rua. Vergonha? Tinha que quebrar o gelo. Por ora só aparecia o primo com aquela prosa de futebol e aí não dava.

Tomou atitude de escancarar a janela e deixar o sol entrar na sua inteireza, iluminando a vida diante de si:

- Bom dia! Vamos curtir, moçada  – disse Gustavo com os cabelos assanhados pelo facho de luz que a brisa trouxera.

- Vou te apresentar umas garotas na praça, cara – disse Roque ao entrar, dividindo a novidade com a mãe, às voltas com arrumação de guarda-roupa.

 Com ele andava uma áurea do possível e do impossível. Sem que se desse por isso, havia se formado ao lado da igreja um grupo de moças para disputa de um baleado na manhã de sombra vencendo início de sol.

- Beleza, daqui dá para a gente ver o jogo de baleada na pracinha. Vou até lá conversar com as meninas, disse Roque.

Ficaram então de camarote aguardando diligência de Roque.  Logo, não tardou, houve paralisação do jogo. E no meio da garotada, gesticulando como um profissional, enfeitava a cena um rapaz ágil. Era ele. Roque assoprava um apito que alguém providenciara na hora.

- Aí ele se achou – observou a mãe, que acompanhava pela janela e conhecia o atrevimento do companheiro do filho.

Organizava-se assim um evento esportivo, digno da pequena assistência matinal. As garotas mostravam-se de certa rivalidade juvenil que ia esquentando o ambiente. E o árbitro esbanjava-se no apito, ditando regras consagradas e com suas explicações criava mais normas.

- Bola da turma de cima! É reversão: pegou por último na perna de Lilica – era o arbítro mostrando entrosamento.

Roque botava ordem na brincadeira, dando seguimento a partida.  Até que veio falar com Gustavo, que resolvera sair da toca, todo penteadinho, com calça cor de chumbo e camisa de cassa, E o primo como acompanhante, bengala com o dedo de mãe, tolerável depois da batalha nos estudos.

O jogo continuava sem arbitragem mesmo, que Roque estava com atenção desviada para assunto extra-campo,  outra bengala mas sem o dedo materno. Aí era mesmo a saída do leão em cumprimentos de beijinhos nas meninas.

- Olá, garotas!

Mas ele estava interessado numa menina branquinha,  a um canto da área reservada à peleja.

- A de blusa de bolinhas? Deve ser parente de alguma colega!

- É tia – falou o primo. – Tia de Samira. Mais nova e tia, irmã da mãe da Samira.

Nem  precisou de um corte, como no cinema, Roque já estava com a menina agarrada pelo pulso.

- Quer te conhecer, cara.

- Já conheço

- Oxi! de onde? – espantou-se a garota.

Já estavam arranchados na calçada da igreja,  quando Gustavo ousou puxar  a branquinha pelo pescoço e segredar:

- Na novela, Nívea-Maria-quando-jovem.

- Ah meu cabelo – disse e ensaiou um sorriso de resultado triste.

- Parece que você não gostou? –  estanhou  Gustavo .

 - É que a gente não tem televisão – respondeu Nívea Maria.

Então Gustavo mudou de assunto e marcou encontro para a boate, à noite. Ela seria chamada de Nívea e embalaria aquele resto de férias do ano de 76. Que quase não acabou.

 

 

sexta-feira, 17 de março de 2023

Menina Escondida

 

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Maior que tudo. Mais interessante que um astro de cinema. Desses que vivem na mídia, da mídia, para a mídia, a mídia, enfim. A quem interessaria esse chamego bobo entre nós, cujo processo de amadurecimento não se revelava às claras? Exalava-se em indagações esse nosso proceder. Um Manoel de Barros do modo de ser, da coisa ameninada, levada à brincadeira, aquilo que empaca o progresso endinheirado, “perda de tempo”, “prego enferrujado” achado no quintal e outras inutilidades.

Tudo isso passava longe do segredo da menina escondida. Ufa! aquele frio na barriga, o “flagra”, o risco de luz na escuridão, do perto com o proibido... depois o êxtase alcançado e recolhido, como um brinquedo de abrir e fechar num inesperado clarão.

Menina escondida e quantos mistérios em volta desse atrativo. Temos que buscar no fundo essa passagem. Dar uma sacudida. Mas ela é de manuseio tênue e não se adéqua aos solavancos de um apressado em busca do efeito, do facho de luz, que põe o dia de sol escancarado no objeto em apreço. De cegar qualquer um. Não, era sorrateiro. No máximo os últimos estalidos de uma fogueira na frente de casa. Onde talvez morasse a menina. Morava,  e de lá saía vez em quando. Dava aquelas espiadas de pé ante pé, “têm gente na sala”, e recolhia-se. Você ficava sem saber direito do rosto e aduzia que era bonita. Segredos e confidências!

            Quem não tinha uma menina dessas? Eu tive uma menina de vultos. Dessas de fazer arte que até o capeta duvidava. Ela carregava consigo um vulcão de hora não marcada. Daí a pouco ou nada. Quem percebeu primeiro? Eu, com meu faro de cachorro perdigueiro. Não a acuei. Deixei que ambientasse. Que exalasse por todos os poros seu cheiro de moça. Desde o suéter debaixo da roupa branca até o recatado da saia. Tal como pitanga madura que, sem mínimo esforço, caia de graça no estender a mão por debaixo. Nossos contatos entraram em conexão de imã. Nada iria mais separar aquelas duas correntes imantadas. Dado seu estado de apetecimento, impossível se desfazer do grude em que se transformavam esses encontros. E vinha daí essa nossa pegação, esses nossos amassos repentinos, corrida de doidos pelos cantos de casa. Uma mordeção. Um exercício canibal do verbo comer. Então a gente, cheias as mãos, era só revelação ao mundo.
 

domingo, 5 de março de 2023

Rosana

 


 

Com a mão direita enfiada por entre a blusa de Rosana, Gustavo brincava de subir e descer morros, enquanto com a outra controlava o volante do carro. Afagava dois pequenos mundos, imune ao movimento de trânsito do sábado. Num lance rápido de conforto, cumprimentava o frescor da noite, enquanto passeava pela orla marítima,.

O fim de semana se abria em novas perspectivas. Conseguira uma paquera com Rosana, moça de responsabilidade, que não era para qualquer garoto. Dessas de a empresa apanhá-la, todo dia cedo e trazê-la de volta à noitinha. A pequena e hábil Rosana era arrimo de família. Não estava na faculdade, como ele, mas na vida. Esses novos atributos de moça, versão anos 80, muito lhe valeram. Não deixou de ser uma elogiosa ascensão mudar com mãe e irmãos para bairro novo. Estava no comando uma menina esperta, durona, mas de sorriso fofo. Nela destacava uma pinta no lábio superior. Curioso o ressoar de voz cantada:

- Gente, venha ver os “Queens”! – e elevava o volume da TV, que transmitia o Rock and Roll naquele verão.

            Mas o que marcava, e só ele percebia, era mesmo aquela pintinha na sua boca. Podiam passar séculos, a eternidade. Era de uma sensualidade imensa, você parando para observar. De cair o queixo. E ela pronunciando o nome da banda de forma abrasileirada: ‘é os Quins”.

            Para completar, a canção que rolava era Love of My Life em seus primeiros acordes, na voz inconfundível de Fred Mercury. O som se tornava gigante e enchia todo o apartamento.

            - Climão – dizia ela ao trazer cerveja e espiar a paisagem de gente na praia.

            - Tchau, Ró! – despediam-se os tripulantes daquela barca, mãe e irmãos pequenos, com  destino ao mar.

Caía a ficha para Gustavo: iam ficar à vontade, só eles dois. Sinal aberto, sob forte calor, crescia o fluxo de banhistas a caminho do calçadão.

Gustavo viu Rosana de short e, erguendo-se do sofá, gritou:.

- Venha, pequena!

- Estava doida para deitar nesse sofá – falou Rosana no ouvido de Gustavo.

- È comigo, bobinha? – respondeu ele, de leve, com a língua no ouvido dela.

Beijaram-se e então o som de um pacote tombado ecoou em meio aos “Queens”. Abraçadinhos, peças de roupas iam sendo atiradas às sacudidelas. Ficou com a camiseta de Rosana na mão, até lhe saltarem aos olhos as duas peras para sua diversão, Depois, umas sacudidas de pernas de Rosana para se desembaraçar do short, que se quedou a esmo. Posicionados, os dois corpos se reconheceram, enquanto Fred Mercury reiniciava seu amor à vida:

- Esse cara é bom e a galera acompanha mesmo. Quando a gente pensa que acabou, o violão parece conversar – comentou Rosana.

- É linda!

Irrompeu aplauso seguido de silêncio na hora de pegar e botar o passarinho na casinha. Brincavam numa tamanha paz que não deram conta de que a janela da sala estava servindo de tela de cinema para alguns moradores do prédio vizinho que se prestavam a voyeurs.

 O ônibus de Rosana apareceria só na segunda-feira, mas até lá ainda era um domingo e a barca não iria retornar naquele instante.

 

 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

 FAB

 

Robson nem caderno tinha. Quiçá uma caneta. Era um dos alunos do segundo semestre de Letras, que, sem encontrar encaixe, andava circulando pelo campus feito zumbi. Sentava na fila de trás, revirando novidades, que só por sua cabeça em cenas apocalípticas de filmes passavam: 

- Edson está comendo essa bacana – apontava os dois estudantes de papo prolongado.

- Conversa de colegas, Robson!

- Que conversa, Gustavo? Está todo mundo fodendo. Não vá me dizer que você não está comendo essa bacaninha que vem lhe pedir carona.

- Pelo amor de Deus, Robson! O mundo pra você acabou, é?

Difícil andar com Robson. Noutras palavras, era um chato. Fazia o tipo de burguesinho que ficou de fora de uma boa faculdade e agora estava ali para a gente suportá-lo nos seus azedumes, em protesto contra tudo  que não fosse do agrado. Rapaz de boa aparência e todos os requisitos protocolares. Mas nessa engrenagem faltava um dente. Daí essa inquietação de Robson. Que até parecia só eu/ entender. Talvez por conta da cola que dei a ele numa prova de Literatura, numa das tentativas de ajudá-lo, que teve início esse tratamento provisório. Ficava pondo panos quentes nas suas presepadas, reservando-lhe carteira:

- É de Robson essa carteira. Olhe ele chegando ali, ói! – reclamava.

Às vezes a gente saía pela cidade no carro do pai de Robson, de mil recomendações, com diálogo que eu flagrei um dia entre os dois no orelhão:

- Bom que eu não pego mais essa porra de carro – disse Robson em desabafo ao desligar o orelhão. Lembrava que “essa porra de carro” saiu depois de desligado o aparelho. O pai era de um rigor monstruoso.

- Ele te sufoca, cara – falamos em apoio.

E isso só contribuía para agravar o quadro psicológico do garoto. Numa dessas saídas, oferecemos carona a uma presumida garota da noite e tocamos para um motel. Aventura! Se dois em um era falta, nós estávamos em três. Levávamos mais um colega, o poeta. Mas todos os ratos eram pardos e a menina topou o convite e tapeou os três direitinho, de forma que ninguém comeu ninguém e todos se saíram machos. Encerramos a noitada forrando o estômago com sarapatel e cerveja, num bar encontrado ainda aberto perto da faculdade.

Os estilhaços da briga com o pai de Robson ficavam mais entre eles mesmos, só algumas fagulhas eram entrevistas, como, por exemplo, o fato de o pai, sem enxergar viabilidade para o mundo deles, discordar do curso em que o filho ingressara. Daí a bomba de um lado e de outro, numa explosão de relacionamento familiar. Mas por dedução, parece que o ramo de negócio em que se firmava a família era o de corretagem imobiliária. Robson falava muito de ser forçado a tomar uma atitude séria na vida, como maneira de resolver a parada

- Sumir, bicho! Qualquer hora eu pego um avião e desapareço por aí.

Ia fazer vinte e um anos. Não precisava mais de alguém alegando coisas e cobrando dele o impossível por isso. Vi um homem barbado chorar, que não deu tempo de pensar.

- Pra você me levar no aeroporto de moto, pode ser? De lá, vou pro Rio de Janeiro.

- Você é maluco, Robson? Quem vai pagar a passagem?

- O avião é da FAB, cara, não pago nada.

Marquei de apanhar, fui e apanhei um cara pronto,  mochila às costas. Fiz a viagem mais longa de moto até então. Imagem de cima para baixo mostraria o cinematográfico da dupla na pista, deixando a grande cidade para o passado, como página virada do caderno que Robson não levava consigo. O pai dele ligou para minha casa e só me perguntou se eu dava notícia de Robson, tendo desligado normalmente quando contei a verdade sobre a viagem. Dias depois apareceu Rose, colega de turma, e revelou-se uma bomba: escondia uma barriga de três meses e meio de gravidez.

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domingo, 5 de fevereiro de 2023

 

Ítalo

 Diante do oceano de inutilidades e achados maravilhosos, Ítalo perdia-se em autoconhecer-se. Talvez lá encontrasse a flautinha do presépio de seu Orlindo - velho comerciante que guardava a encomenda com esmero havia anos, desde sua visita a Bom Jesus da Lapa, no ano de mil e novecentos e...?

Ítalo era um menino de hábitos urbanos periclitando pela roça, lugar de vegetação vária, caminhos íngremes, riachos, córregos, grotas e até cachoeiras.

Por isso, na fazenda do pai, confiava sua segurança ao menino filho do vaqueiro. Assim, terminada a talhada de melancia, cuidavam de ir pelos campos abertos em frente, com mata fechada mais ao fim e prosa infantil de perguntas e respostas:

- Ali tem gado brabo?

- É só rodear o curral e passar beirando a cerca que não tem não.

-  Tem pé de umbuzeiro do outro lado?

- Tem. Nós vamos até lá.

Ítalo imitava a destreza do menino ao pular cerca, abrir cancela, tirar o pau da porteira, dar mergulho rápido no córrego e se refrescar. Só faltava carregar também um estilingue no pescoço. Sim, simpatizava com Neném. Ainda mais que ele acertou uma pombinha, de longe, numa só estinlingada. Tirava umbu de vez no lugar de difícil acesso:

- Esse! – apontava com o indicador Ìtalo.

- Tome! – ofertava Neném.

Brincaram um bocado. Na lagoa, pegando corrida no mergulho, chupando frutas, entre os carneiros que havia pelos prados, até  o escurecer ao cair da tarde, quando, com o berreiro dos bichos e farfalhar das árvores, chegava aviso de ir embora.

-  Vamos, Neném!                       

E Neném encabeçava, seguia comando do seu futuro patrão, a quem dera fruta no ponto de morder, umbu inchado e maduro, e com quem disputara mergulho no córrego.

Mas agora, nessa tarde, no caminhar de volta, notava que Neném ia ficando meio recanteado.

- Vamos pelo fundo, Neném, que a gente pega a estrada adiante e acaba conhecendo mais a mata e acha outros umbuzeiros,

Neném se manteve calado mas firme como se tivesse passado o posto de comando e ficado de prontidão para eventual socorro. Pelo menos esse foi o entendimento de Ítalo, que mais ousado ainda se tornou.

- Vamos por aqui, que tem uns pés de umbus  e árvores bonitas.

Saltaram a cerca e caíram numa mata sem uma nesga de sol, na qual foram adentrando tangidos por um enxame de abelhas. Longe, ouvia-se um berro do gado recolhido no curral perto da casa. Havia nesse berro prenúncio de uma noite iminente e fria. Conseguindo se desvencilhar das abelhas por entre árvores que faziam ofuscar a capoeira, Ítalo ergueu-se à procura do companheiro, que, para seu espanto, chorava. Como a um neném;  o estilingue esquecido no pescoço mostrava  que ele era apenas um meninão com medo de escuro sem nenhuma magia.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

 

Regina

1.

Estava jogando sinuca com Roque na hora que todos correram para as portas  do bar:

- Quero ver também, porra! Com licença! – falei.

            Ficava um amontoado de curiosos. Novidade nenhuma. Como sempre. No bar do Borba havia uma enorme mesa de sinuca que segurava a rapazeada na parte de cedo.

            - Chegaram essa noite de S. Paulo. São minhas duas irmãs mais velhas e sobrinhos – disse Roque dando uma tacada forte na bola.

            Enfiei-me no meio e fotografei mentalmente a sobrinha de Roque, dizendo por fim:

            - Vai ser minha namorada! –  e fui desocupar a sinuca, abandonando o taco na mesa.- Sua sobrinha é um tesouro, Roque – arrematei.

- 16 anos, cara.

E já estavam desenhadas minhas férias, com clima de filme de sessão da tarde e as aventuras de dois jovens. Ele, doido por uma paixão e ela, também, cheirando a hortelã e mel de abelha.

- Como é o nome dela, Roque? –  gritei entusiasmado.

- Regina, filha de minha irmã mais velha Hortência, de seu segundo casamento.

 - Gustavo e Regina, um amor descuidado que brotou  a tempo. Começou a rolar o  filme dentro de mim.

-  Temos que falar com a mocinha – disse Ricardo a um canto.

- Para ver se aceita fazer?  – falou Gilba, que pegou meu taco da mesa.

- Agora mesmo, cara – retornou Roque, com firmeza.

 - Minha equipe é de primeira – eu disse.

Assim, com esse espírito empreendedor, formou-se uma dupla, sob a chefia do tio, para saber de Regina.

- Fico na espera – eu disse mascando chiclete.

- Jogue fora. Cuspa, Vai falar com a garota e você nem imagina como ela é – ralhou Roque, o tio em ação.           

- Aguardo. Vamos lá então! – gritei apreensivo desfazendo-me do chiclete e penteando os cabelos com os dedos.

 

 2.

- Chega, meu tio. Chega! – gritava engraçado em paulistês a lourinha,

- Vou te apresentar logo esse cara. Olhe ele ali se escondendo. Venha cá, rapaz, pra você civilizar mais um pouco, resenhava Roque.

Ela falava retirando as mãos do tio, de seus ombros. Bonitinha. E era tímida também.

- Realmente, Roque – murmurei.

Dei beijinhos de apresentação. Com pouco, estávamos sentados no banco da pracinha batendo papo com sotaque paulista e tudo.

- Esse negócio do filme é só metáfora, Regina.

- Achou que eu estava ligada?

Interessante que a gente se aproximava cada vez mais. Resolvemos dar um giro pela cidade e logo estaríamos de volta:

- Temos um universo para conversar – eu  disse 

- E o dia é pouco. A vida... – ela se deixou calar.

- Temos que delimitar, não é? – retornei.

- Tempo: 1978, espaço: Brasil. Temos que versar aí dentro. Nosso mergulho é nesse universo, depois vamos ampliando –  ela ensinava..

Depois, virei-me para os  lados e para ela:

- Exatamente, Regina. Merecemos um beijo. Com licença – beijei a garota, que me  ofereceu o rosto em paz.

- Uma caixa dentro da outra, confirmou ela com olhos amendoados.

- Você já faz parte de minha caixinha – dei outro beijo em Regina. Vamos sair à noite! Combinado?

- Combinado.

Tiirava um chiclete do bolso, quando ela me pediu um estendendo a mão. Dividi a goma numa dentada em dois pedaços. Ela fechou a mão, cerrou os olhos e abriu  a boca, queria a goma de mascar ali, onde coloquei com outro beijo.    

 


3.

            Quando passei por lá no carro de pai, dei uma buzinadinha, apareceu Roque:
            - Pode ir embora, cara. Zebrou tudo. Guerra das Malvinas.

- Como assim, Roque?

            - Conheço as duas. Morei lá com elas.  As duas brigaram. A briga delas é  algo antológico. Uma segunda guerra mundial.

            - A gente não tem nada com isso.

            - Nada, mas sobrou pra você. Hortência proibiu ela de sair e até de namorar aqui. Bateu o martelo. Não abre nem com a porra. Briga delas ninguém entra. Não duvido nada de querer voltar para S. Paulo amanhã. Elas não são como nós aqui não. Costume feio. Sem respeito. E os nomes?

            - Mas deixamos combinado! Eu não poderia falar com ela?

            - Nesse momento não. Estão isoladas. Não falam com ninguém.

            Quando tudo parecia caminhar nos eixos da normalidade, surgia das nuvens essa escuridão de mundo!  Espremia-me de medo, apanhado pela impotência repentina.

- Tem que haver um jeito – disse Gustavo, choramingando, em frouxa diligência na partida do automóvel.

- Espere aí, Roque, briga lá em S. Paulo é uma coisa e aqui não é S. Paulo,

- Ela vai dizer que é a casa de seus pais.

-  Regina pode dormir em outra casa? Dorme com minha prima ou lá em casa.

Também já cansado, Roque ponderou

- É, dar para conversar sobre isso.- Espere aí.

Foi e sumiu lá para dentro. Não se falou mais em Roque.  Passaram-se séculos de agonia, parodiando o poeta., e nada. Até que ao volver para casa, de lá saíram Roque com a prima e uma sacola de roupas atirada. Saltei fora e peguei a sacola atirada que ficara para trás e fui chamando com uma alegria imensa:

- Vamos, Regina!

 

domingo, 15 de janeiro de 2023

 

Iniciações

 

 Fernanda vestiu apressadamente o uniforme. Fresquinha do banho, veio para ele. Beto a tomou num abraço, encostando-a na parede da saleta. Depois ficaram macetando, que era bom assim permanecer, não tivesse que logo seguir para o colégio. Vizinho, sempre passava na casa dos Gonçalves para ir para a escola em companhia dos irmãos dela, Ismael e Paulinho. Mas, claro, toda atenção para a moça, que era noiva compromissada. Era sagrado. Um esfrega-esfrega e depois ia se juntar com os colegas.

Essas casquinhas valiam ouro. Nem sabia como aquilo começou. Se foi mais por ato extintivo dele ou dela, Fernanda. Essas coisas acontecem sem culpa de ninguém. Ela era mais velha, nos seus 17 anos; com namorado que aparecia só nos fins de semana; ele, nos seus 13, durante a semana de aulas, só com imaginação. Imaginação do mundo inteiro. Vai que ela fazia também com o namorado. Pouco mas fazia. Mas com ele, Beto, menino, era mais à vontade, sem, contudo, demonstrar encegueiramento. Por isso que Fernanda permitia e até avisava quando o noivo ia aparecer:

- Essa semana não que Jonas vai vir – e ria, sem entusiasmo algum, como se fosse hora de ele aproveitar  mais nesses amassos,

Interessante o respeito que nutria em relação à menina noiva: não havia beijos, eram só abraços. Mesmo porque ela não era nada bonita nem engraçada. O normal de uma menina branca, criada na simplicidade do trato, rústica, pronta para o matrimônio. Falavam com sussurros. E isso aumentava o tesão de adolescente,

- Você pode ficar mais tempo, que Jonas mandou recado que será na outra semana a vinda dele.

- É, Fernandinha? – sussurrou.

Ela se abriu num sorriso e perguntou porque ele estava falando baixo.  Respondeu que era para ouvir a voz dela no mesmo diapasão, que era gostoso. Aí ficaram cochichando como se fosse  segredo, ousadia.  Pararam com a pegação ao ouvir o irmão  Ismael chamar por Beto lá fora. Prometera  ausentar-se nos dias de Jonas.

Passava mais ao largo e via as duas cadeiras na frente da casa. O casal namorava inamovível e num quase silêncio. Imagem congelada. Umas voltas na pracinha abraçados até a hora de se recolherem. Haveria repetição na semana seguinte. E até lá, Beto era o substituto. Era um gol que aprendia a fazer nessas  iniciações.