domingo, 22 de setembro de 2024

Adilce

 


 

Ele se recordava dela frequentemente ao lado de colegas. Nem muito melancólica nem excessivamente feliz, mas de sorriso fácil. Na verdade, seu rosto era o que mais acompanhava nessa recordação. Não se sobressaia pela beleza, mas por ser uma jovem comum, companheira. Não havia presunção nela, que prezava pela discrição. Começando pelo vestuário. A exuberância de Adilce só existia na imaginação de quem a admirava sem saber, como agora recordava Edu. Não nascera para ser líder, mas para prestar uma assessoria de primeira qualidade. Descoberta tardia, mas válida, enquanto vida. Tantos passes desperdiçados!  Vez ou outra vira Adilce erguer o braço e fazer uma observação para tirar dúvida. Seria ela uma aluna dentro da média, sem sinais de um segredo.

Também ela seria a garota respeitada do bairro. Espécie de orgulho adormecido. Falariam dela, não espontaneamente, mas se alguém provocasse, a propósito de algum assunto. Fora daí não havia o que ecoar. Só Edu podia tardiamente conhecer seu âmago. E ficar querendo lhe dar explicações, chamando-a a um canto de sala:

- Posso lhe dizer o seguinte, Adilce: – dizia Edu ao pé de ouvido, em contato com seu cabelo curto, que, ao seu arrepio, aproveitava o cangote para cumprimento com um beijo.

Ela se limitaria ao sorriso de sempre e a um volver de ombros, como se falasse com ele o trivial.  E esse quadro ficava assim se repetindo, em lampejos de Adilce em meio aos colegas de sala.

Quantas vezes, Edu não a tivera  ali por perto e nada fizera? Deveria ter convidado Adilce para uma cerveja, uma boa conversa, quem sabe?

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

 

Esperando no Studio

 

A cunhada dele, envolta em uma toalha de banho, abriria a porta do Studio, permitindo que Edu entrasse e aguardasse na antessala. Esse pormenor da toalha não estava previsto no acordo com o proprietário do Studio. Mas qual era a sua relevância agora? Foi lance rápido, como pedia a circunstância. E nada a acrescentar senão cenas, em devaneio, de um ato de loucura.

A campainha soou umas duas vezes. Na segunda, um barulho de chaveiro foi ouvido. Em seguida, uma porta de vidro se abriu e a estaca de uma Deusa surgiu em frente, enrolada numa toalha branca e exalando forte odor de sabonete. Com um sorriso no rosto. Sem pedir desculpas, pela aparente normalidade, parecia estar à procura de alguém. Edu, de repente, viu o portão se fechar e a toalha, perto dele, se soltar do corpo, como o invólucro de um bombom.

A propósito, o que iria mesmo fazer ali? Lembrou-se então que tinha que botar voz definitiva numa gravação já aprontada por Tadeu dos Teclados. Decerto que ele andara tecendo elogio ao seu talento, que apareceria para gravar uma composição sua. Tinha mesmo que aguardar, o que talvez justificasse a exagerada receptividade.

Ela tão garota e ele tão entranhado em anos!

- Mas esses meninos de hoje não dão liga para isso não – reclamaria egoisticamente Edu.

Cairiam então sobre o sofá, que sofreria um bocado na fúria com que se encontrariam. Bonita a manchete do outro dia: homem ataca moça em recepção de Studio. Mas aí, irmão, até explicar que beiço de jegue não virou chiclete...

- A história seria outra – era o que rolaria de conversa de rua.

Mas a beleza da garota seria digna de homenagem.

- De até, respeitosamente, encomendar missa pelo sucesso alcançado – completaria a conversa de rua.

Um corpo de garota recém saído do banho, excedendo a fragrância, em sorriso aberto, num afundar-se macio para a vida, só daria azo a essas imaginações, na mente de um boêmio em decadência como Edu.

Quando se reergueu, notou que a ninfeta desaparecera com a chegada de Tadeu, que entrou na saleta e, no trivial, chamou:

- Edu, pode entrar.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

 

Uma colega sergipana

 

 

Ela possuía um corpo impecável, embora pequena, sem esconder segredos sob suas sedosas madeixas e com um leve sotaque sergipano em sua voz sedutora. Com apenas algumas palavras, já chamava o noivo de “Carneirinho” em todos os lugares. Era assim que se referia a ele, o proprietário de um chevete novo que se destacava na escola e, em parte, com ar de proprietário também da pequena. Daí a razão de falar pouco e apenas com poucos. Ítalo, tímido, arrastava sua carteira na direção da garota silenciosa, que lhe parecia diferente. Sobre o carro, ele concordava com os pais:

 - Enquanto não passar no vestibular, não quero ver filho meu se exibindo ao volante.

Ele não alimentava nenhum desejo real por carro, e observava, com total naturalidade, o ciúme que Carneirinho despertava entre os colegas. Sentar-se naquele canto não era por atração por Carneirinho, mas por consideração pela sergipana, com quem mantinha uma conversa tranquila,

Um dia, quando Ítalo mal se sentou foi logo recebendo notícia forte:

- Gente, o papa morreu –  alguém impôs silêncio na sala.

         - Ôxe, de novo? Isso foi há um mês atrás, cara  - disse Ítalo,

- Deu na TV agorinha mesmo, morreu o outro, João Paulo I.

-  Ôba, o colégio vai feriar – pilheriou Carneirinho.

         - Fale então com sentimento; é pecado falar assim, cara – censurou  Ítalo.

- Não sou religioso – retornou Carneirinho.

- Também não, mas por princípio somos católicos.

- Verdade – disse a sergipana.

Viu a palavra sair dos seus lábios,  e se encheu de felicidade com a concordância em sergipano. Ainda bem que os colegas levaram João Carneiro Aquino para a área de recreio, rumo da cantina, de onde voltaria soprando um copo de café, como ato preparatório para o cigarro longo que costumava trazer na algibeira.

Iria voltar depois do feriado e, durante o papo, num vacilo de Carneirinho, aplicar um beijo na sergipana, porque carregava consigo um interesse platônico por ela, que era bonitinha, de boca bem desenhada. Perpassavam-lhe esses pensamentos, mas nada tinha a oferecer para a garota, sequer uma prenda, senão sua simpatia. O outro pelo menos tinha um carrinho transado e a ginga do chaveiro nos dedos. Mas descobria então essa afinidade brotando entre eles, Ítalo e sua colega nova. Se não vencia pelo menos arrefecia aquele entusiasmo dela.  Preparava-se para um beijo de ocasião, que era para haver e não houve.

Quando voltaram na semana seguinte, que se encontravam às sós, numa situação temerária, rostos quase alinhados, o que houve foi um anticlímax.  Ítalo se lembrou da festa desfrutada na noite passada (Forró dos Estudantes) que lhe deixara numa ressaca dos diabos,  ao ouvir da sergipana:

         - Êta, que cheiro de cachaça!

domingo, 8 de setembro de 2024

Mulheres que somem

 


 

Mulheres que somem. Gustavo teve umas tantas, que a caixa de saudade se encheu delas e travou, Somem de vez ou na poeira do tempo. Como, por exemplo, Branquinha, que ninguém sabia por onde andava. Havia nomes e números. Essa, por exemplo, era a de no. 3. Outras Branquinhas também existiram e chegaram a passar por ele. Nessa tentativa de organização, algumas escapuliram e se perderam. Essa tinha três filhos pequenos. A explicação que prevalecia era que dela eram só dois, o  outro era irmão caçula deixado pela mãe.

- Olhe lá sua Branquinha – apontava o garçom, colega de trabalho dela.

Não se exibia, mas nela podia-se perscrutar um corpo sarado de elegante  mulher. Tinha que se virar, dar o duro, prestar serviços de auxiliar de restaurante, quando era tolerada no voltar para casa com suas trouxinhas de comida. Depois, á noite, tinha que se virar num trampo de frentista do posto de gasolina. No mais, arrumar uns trocos em outros serviços e até enfrentar galanteios, nos limites dos descaramentos, que com ela ninguém podia se fazer de besta.

Freguês assíduo do estabelecimento, Gustavo acompanhava o esforço de Branquinha. Tal a liberdade, que um dia, numa brincadeira de gata ladrona, ela roubou de Gustavo uma nota alta.  Quando se ergueu para ralhar com ela, avistou sua estampa vindo  de lá com uma filharada. No detalhe, a irmã no apoio, ajustando as roupinhas das crianças. Mas, nesse particular, observava-se a maldade dos fregueses:

- Dizem que a irmã dela é que é descaradinha.

Gustavo falava “roubou” para ela desconfiar e devolver sua grana, mas falou mais alto o instinto maternal da gata ladrona, com a escada de filhos pequenos para cuidar. Foi pelo bom senso que Gustavo decidiu. Após ela, pretextando dar o caso por encerrado, resolver empurrar Gustavo com a bunda. A maravilhosa Branquinha  não deixava que se ultrapassasse, que se fosse adiante. Também dela se sabia pouco.

Despedia-se da filharada e, rumo à cozinha, vestia um avental com a elegância de uma mamãe gata.  À noite, apareceria de macacão de frentista para, como quem distribui agrados, relativizar as estapafúrdias cantadas que levava.

        

 

 

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

O peru

 

Era numa segunda-feira cedo, quando Edu encontrou um estranho bicho sobre sua mesa de vice-presidente do Patronato de Presos e Egressos.  Achou engraçado o gorgolejo de um peru com o pescoço num providencial furo na caixa de papelão. Era um peru de quintal. Presente de gente de subúrbio, que se adivinhava pelo cheiro característico que punha impregnado todo o ambiente.

         - Deixaram aí de presente para quem tirou o filho deles da cadeia. Um presentão – disse o vigia.

– Pelo que a mulher disse, “é para um dos meninos”-  informou o vigia.

Edu se lembrou de um habeas corpus, que havia impetrado na semana  anterior,  em favor de um garoto implicado com porte de maconha.

- Assine comigo, pra dar sorte, Ayana – pediu na ocasião a uma colega angolana, que, com a  proclamação de Independência de Angola, passou a morar no Brasil e era indicação de Edu para substituição no comando do patronato.

Após pesquisa, acertaram numa jurisprudência sobre modéstia quantidade da erva ser insuficiente para realização do tipo penal. O Ministério Público já tinha emitido parecer favorável ao pedido. Ele tinha que estar lá na hora do despacho do juiz, apanhar o Alvará de Soltura e tirar realmente o menino da cadeia e levá-lo para casa.  Não era dado a essas manhas como o colega Gilberto, que inclusive era costume aparecer em programas de rádio. Sem propaganda, fizera o principal.

- A família ficou muita agradecida, a mãe e a irmã mais velha, até que  esperaram mas como estavam atrasadas foram embora.

- Não foi o Doutor que fez o habeas corpos? Então para quê esperar ´pelo colega?

- É o presidente, né, Sabino.

- Eu sei, ele é mais vaidoso,  gosta dessas coisas, de se aparecer..

 Além do mais, estavam num local de serviços públicos,

- Não podemos receber pelo serviço, Sabino.

- Foi um presente da família do preso, Doutor.

         Gilberto seguiria esse posicionamento do vigia? Ele iria chegar e, como chefe, decidir quanto à questão. Por ele, Edu...

- Com certeza, seu colega nem pensaria duas vezes.

Era a marca de Gilberto. Veio à sua lembrança o dia em que Edu chegou e notou o movimento de umas mocinhas caminhando atrás de Gilberto:

- E essa blusa como fica agora, Gilberto?  - disse a garota dando uns passinhos da porta do banheiro até a mesa da pequena sala.

Edu achou engraçado mas, quando a menina entrou no banheiro para se trocar, chamou a um canto o presidente e falou:

- Por que elas ficam assim atrás de você o dia inteiro, doutor Gilberto?

- Ué, querem ser manequim, Edu.

- E desde quando você entende do ramo, cara?

- Eu tenho uma tia...

- Você toma vergonha na cara, rapaz. Você nem daqui é: é do interior.

Depois como ficaria com essa mentira, só tapeação dele?

- Mas Gilberto, quando elas descobrirem essa mentira?

- Vêm outras, otário.

Era assim o cara.

         Descobrindo-se em estado letárgico, Edu preferiu mesmos a ideia de Sabino, levou o peru para seu apartamento mas também no subconsciente o prenúncio do que seria a vida que se iniciava, inclusive com a tradição das ideias conservadoras de Gilberto, ao negar a nomeação da dedicada Ayana como presidente.

 Quando terminou de embalar na garupa da moto o caixote de papelão com o respiro reservado ao pescoço do bicho, ouviu o gorgolejo do peru e as últimas palavras do excelentíssimo senhor doutor Gilberto ao vigia:

          - Edu só anda na contramão, Sabino – falavam da indicação de nomes para a composição do patronato. - Além de ser uma estudante de outra universidade, uma mulher, que nem brasileira é.

 

 

 

 

          

        

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Monique


 

Ítalo teve a ideia. Criaria os textos e seu parceiro Preto faria os quadrinhos. Não sabiam eles do alcance de tal projeto, nem em que estariam mexendo. No começo, até que se limitaram ao convencional de fotonovelas já lidas. Depois, arranjaram-se de modo novo que embalou a coisa.  Com estilo. Chegava a informação de que a revista caíra em mãos dos garotos da Rua Nova:

- Eles estavam comentando, O enredo é bom. O motorista namorava a filha do patrão e teve que ir embora – falou Nilo, que negociava novidades para aquelas bandas, inclusive da dupla  que Ítalo estava formando com Preto.

            - Falava o quê, Nilo?

            - Só falava da beleza de Monique.  Da bunda da garota, dos cabelos, dos desenhos,

            - Aí é comigo mesmo – disse Preto.

            - Sai fora, Preto; Você vai ficar...  Aliás, vamos  todos ficar no anonimato. Vai ser arte de Tim H.

            - Quem é Tim H.?

            - Eis a pergunta, meu caro – disse Ítalo.

Tim H, ficou então assim batizado.  Preto tanto caprichou na arte dos  desenhos, que se tornara estimulante à criação dos textos. Nesse perpassar, Ítalo via a adolescência  espichada ao infinito da imaginação. Daí ter que elevar a produção caseira, que era de uns dez exemplares.

- Tá ganhado espaço,  competindo até  com a revista Grande Hotel – voz de Nilo,

            - Você fala que pega lá na banca de seu Nelson também, Nilo?

            E a dupla vibrava com as vantagens debulhadas por Nilo na mesa do Café, nas horas em que Preto, por sugestões de Ítalo, rabiscava Monique em mais um evento.  Desta vez, no Rio de Janeiro, em busca da realização de sonhos.

            - Eles querem saber se Monique vai encontrar o carinha da jaqueta ou não – Nilo contava dos leitores.

            De repente uma escuridão,  Preto havia colocado a mãozona dele no papel e tampado o esboço, de maneira que ninguém via mais nada. Antes, Ítalo ainda apanhou com uma olhada a ponta do lacinho do biquíni da garota na praia de Ipanema e guardou dela aquela imagem.    Ia ser a capa da revista. Quando Preto retirou a mãozona do papel, revelou-se ao mundo uma maravilha, na areia da praia de Ipanema, o corpo de Monique sobrando num biquíni bem transado em dia de sol.

            - Porra, meu irmão,- essa dá até pra ler no banheiro! –. gritou Nilo.

            Firmado como prática de costume, a empresa Tim H começou a incomodar gente graúda, quando o professor de inglês se anunciou em sala de aula da sétima série  B, para uma conversa séria,

            - O que esse porra vai querer com a gente?

A  maioria dos alunos, já passada de ano, pouco se dava às preocupações de moral levantadas pela figura exemplar do professor. Mas, ia-se à luta. Todos em silêncio:

-- O  diretor deste educandário,  antes de adotar rígida medida,  me encarregou dessa “conversa” com vocês – o professor iniciava,

A turma, sem uma preparação para tal assombro, mantinha-se quieta. 

- A mãe de uma de nossas alunas achou na sua bolsa em formato de revista um desenho pornográfico – disse e exibiu a bunda bem desenhada de Monique para a turma embevecida.

Uma algazarra iniciou-se e cessou de vez ante os ensurdecedores tapas na mesa aplicados pelo mestre:

- Silêncio! Proponho que o aluno responsável por essa pornografia se apresente para assinar um compromisso de jamais voltar a envergonhar a escola com a fabricação de tal pornografia, sob pena de suspensão de toda a turma por trinta dias.

Era a Censura, respingo da ditadura, que chegava por essas plagas.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Flávia

 


 

Além de Edu ser voto vencido, eles realmente tinham razão: duas semanas de internamento não eram suficientes. Referia-se ao serviço de tratamento e a torcida de familiares e amigos:    

- Isso mesmo, hora que você ficar bom, você vem pra casa.

Era o apoio, a solidariedade. Estava ali numa das áreas ajardinadas, escutando Flávia ao violão, martelando o verso: o Sol vai renovar a vida. Era uma composição que Edu fazia junto com ela. Inspiravam-se na chegada da colega sergipana, que entrara meio às apalpadelas até que com o Rivotril acabou dormindo ali mesmo na grama do jardim, sob o sol leve da manhã, antes de ser carregada para dentro. Flávia sabia desse detalhe e caprichava no choro:

amanhecer mal amanhecida

procurando braços para dormir

procurando casa que ficou pra trás

um travesseiro cheio de paz

                       

- Legal como você consegue captar os dois momentos, de chegada e de alento – era a pausa para um breve comentário de Flávia..

-  A garota é um avião, Flávia, Daqui a pouco ela chega para tomar um sol – disse Edu.

- De tanto ouvir o refrão? – brincou Flávia.

– Ih, ela vem chegando! – encerrou Edu.

A garota veio sem perder o molejo:

- Você me empresta um cigarro? – aproximou o Monumento, de short, cujo sergipano carregava no sotaque.

Acendeu o cigarro. Sem tremedeira nas mãos, observava Edu, a garota se retirou para fumar debaixo de uma árvore adiante.. Edu, em particular, encarou a colega Flavia para explicação do caso:

- Álcoo?

- Não. Cocaína.

Flávia passou a ficha da sergipana. Começara como manequim, porém, no primeiro sinal, a família aconselhou-a a afastar-se de alguns amigos e da droga.

- Seria uma tragédia com uma garota dessa estampa.

- Oh, dessas é que não falta, meu irmão. O caso é parecido com o meu.

O caso de Flávia envolvia maconha. Então, Edu falou:

- Sua família cuidou a tempo, hein?

- Contaram pra mim mãe que seu estava com uma turma que fumava.

- E era verdade?

- Admiti. Ela me falou que pagava tudo para eu parar. Aproveitei o recesso na faculdade e vim pra cá.

- Então, viva sua mãe, mandar você pra mim. Você é jovem, quarto semestre de Letras, não é? Uma parceira de composição.  Uma atriz de futuro,  garota.

Mas ninguém ali estava obrigado a nada.  Lugar de reencontro consigo, qualquer dia, numa busca de acerto de consciência, a sergipana confessaria tudo.  Por enquanto ela estava em fase de estudo. Depois iria despontar a maravilha que guardava no seu íntimo. Todo dia a rotina, de levantar cedo, tomar o café, banho de sol e ir para sala de terapia, onde se ouvia o profissional.

- Eu estava crente que se conseguisse passar um dia, eu passaria adiante.

Sobre esse fato, Edu anotara no diário: Em, 23/09/15: Fiquei quase um ano sem beber, até que no dia da vitória de Dilma para presidente, de alegria tomei uma “boa dose” de cachaça, que deveria ser só aquilo, e tudo acabou voltando de forma mais exagerada, a ponto de ter que procurar tratamento aqui, com apoio da família, e compreender a minha doença e saber da importância de evitar o primeiro gole.

- Você viu ontem  à noite a volta de Rodrigo Reis? Teve recaída, voltou.

- Eles não deram alguma previsão pra você?

- Dizem que não estou preparado.

 Edu ainda estava vencendo a cantilena de ir embora, mas faltava muito pelo visto. Nesse dia, ele fez anotação no seu diário, apanhado por Flávia, que balançava a cabeça concordando enquanto lia:

Em, 29/09/15.

Sempre que eu cessava o hábito diário de beber, minha esposa, feliz, comentava com as pessoas "graças a Deus, agora é para o resto da vida", porém eu discordava, até que voltei ao vício em um ritmo mais intenso (compulsividade). Comecei a refletir sobre como poderia finalmente acabar com aquilo, pois não podia mais acordar todas as manhãs já embriagado para enfrentar o dia, que passava como um acumulado de momentos perdidos e não vividos plenamente, causando danos à minha saúde. Foi então que decidi vir para esta casa, com o apoio total da minha família, onde descobri que no meu caso se trata de uma doença progressiva, cuja recuperação depende da aceitação (rendição), o que finalmente aconteceu durante o meu tratamento. Agora, conto com a ajuda da força de um Poder Superior, além da minha própria vontade, da literatura e dos terapeutas, pois há um mundo inteiro à minha frente e muito a ser conquistado.

            Flávia fechou o caderno e  o entregou a Edu:

- Você já está perto de nos deixar, cara.

Tempos depois, Edu recebia  de volta o caderno com as anotações do terapeuta  Edson, confirmando as impressões de Flávia:

            Em 23/10/15:  A vida surpreende em todos os momentos. Agora é só você mostrar que é capaz. Só por hoje! Edison.  

          Ia fazer um período de noventa dias quando resolveram acolher o pedido de Edu.  Nesse dia, apareceram informações de Flávia: uma notícia ruim e outra de compensação: amanheceu, sem a sergipana (a mãe viera buscar na noite anterior), mas Edu recebia espontaneamente de Flávia um beijo na boca. Era a compensação.