sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Sem nota fiscal

Já que sonhar é de graça, Deraldo não deixava por menos. Seus sonhos tinham a altura das estrelas. Falava de coisas a realizar como se fosse do tipo “vou ali tomar um cafezinho e volto”.

- Se tudo der certo, amanhã estarei no Rio de Janeiro tomando um chope à beira da praia com Xuxa.

Dizer o quê, pelo amor de Deus.

- Sente aí, Deraldo. Tome uma pinguinha com a gente mesmo, homem.

- Não posso; tô aguardando um telefonema de Maité Proença. Ela ficou de me ligar hoje.

Muitos dos amigos achavam que Deraldo sempre fora assim. Outros, porém, atribuíam essa sua perturbação à segunda falência por problema fiscal.

Altas multas por sonegação de impostos o levaram ao caos.  Da Segunda vez, quando se reergueu, procurou andar em dia com o fisco. Pagava religiosamente todos os tributos. Até o que às vezes não devia. Na dúvida, pagava. Queria dar sua contribuição e conduzir-se dentro da lei. Com tantos tributos, a vaca foi de novo para o brejo.

A vaca não, que Deraldo não era pecuarista, mas o seu comércio de atacadista.  Resultado: andar direito também não dava camisa.

Assim é que Deraldo de repente se tornou aquela explosão de fantasias. E passou a desfrutar daquilo que é de graça: sonhos. Pelo menos já não devia fedêpe nenhum; os outros é que lhe deviam.

Tantas marcas lhe deixou na mente perturbada a fase de operação fiscal que, quando Deraldo falava em dinheiro, expressava-se  mais ou  menos assim:

- Com dois milhões de UFIR eu faço um arraso.

- Qualquer dia eu ponho a mão numa bolada.

E pôs. Nas alturas em que andava, não é que acabou acertando sozinho na loto.

Comprou uma F-1000 cabine dupla e partiu para o Rio de Janeiro. Freqüentou ambientes sofisticados. Esteve na Academia Brasileira de Letras, durante a solenidade de posse de Dr. Roberto Marinho.

E quando, dia seguinte, foi recebido no Palácio das Laranjeiras, fez por merecer uma repreensão do então governador Brizola, seu líder político, por ter atendido ao convite do poderoso chefão da Globo. Mas, para não estender muito o caso, vamos encontrá-lo de volta para a Bahia, após grandes aventuras no sul maravilha.

E não voltava sozinho não. Com ele vinha todo um time de primeira: Xuxa, Maitê Proença, Lídia Brondi e Vera Ficher. Lembrava o ataque da seleção brasileira de 70: Jairzinho, Pelé, Tostão, e Rivelino como falso ponta-esquerda, que era para enganar os estranjas.

Logo ele se lembrou daquele velho ditado: Deus quando dá a farinha, o diabo fura o saco. Ao entrar na divisa entre os estados de Minas Gerais e Bahia e passar pelo posto fiscal, voltava aquela aporrinhação. A perseguição fiscal acabou sendo uma inhaca na vida de Deraldo.

- O senhor tem nota fiscal? – foi perguntando o fiscal de olho no interior do carro.

- Essa não. Nota fiscal?! Claro que não.

- Pois então meu amigo, vou lavrar o auto de infração. A mercadoria - concluiu olhando para Xuxa, Maitê, Lídia Brondi e Vera Ficher – vai ser apreendida.

- Mas qual é a infração, ô seu fiscal?

- Contrabando, meu filho, contrabando do grosso... ou do fino, sei lá.

- Contrabando de quê?

O fiscal, com a caneta em punho e cara de ousado, foi apontando uma a uma: Xuxa, Maitê, Lídia Brondi e Vera Ficher:

- Contrabando de açúcar, meu filho.

Era o destino de Deraldo. Mas, como dizia Machado de Assis, é melhor cair das nuvens que de um terceiro andar.

1990


Nenhum comentário:

Postar um comentário