segunda-feira, 8 de junho de 2015

O menino que não devia crescer


Para minha irmã Ana Marta Prado Barreto

Quando era pequeno, a tevê em preto e branco da pensão de tia Preta, lá em Montes Claros - a gente de férias - fazia chamada da telenovela que eu, então, achava chocante: O Homem que deve morrer. Nem sei como foi a telenovela, porque depois voltamos e aqui não havia televisão. Mas agora eu faço uma chamada: O menino que não deve crescer.

E não devia mesmo. Igual a Pedrinho do Sítio do Pica-pau Amarelo. Ficaria no quintal de casa, que, de poucas dimensões, era um mundo, como no poema de Manuel de Barros.

No pensionato de tia Preta, que parece ter nascido para ser mesmo tia, além dos hóspedes que se acomodavam nos quartos construídos no fundo, moravam uns três sobrinhos, a cunhada que cuidava de um deles, ainda novo, mas enfermo em cima da cama, com quem ela tinha dois filhos pequenos, na idade de brincar com a gente, eu e minhas irmãs, na estreita área que restava do quintal.

Ah, chegou depois de BH uma irmã de tia Preta, que era casada com um senhor bem mais velho, com duas filhas, uma que era obrigada a ficar dormindo para ver se engordava e outra tão bonitinha, que ficou sendo a minha paixão – um dia dei uma bicada na tigela de café que Nádia tomava e deixara por descanso na janela, enquanto brincava com as demais crianças, minhas irmãs, Andréia e Quinho, e, vendo minha ousadia, ela despejou fora todo o líquido e foi buscar outra tigela. Fiquei tão humilhadinho. Ainda bem que Zé me chamou para bater uma bola num terreno baldio próximo.

A menina magra, e põe magreza nisso, recebia reclamação da mãe quando saía do quarto. Tia Preta acomodando hóspedes que chegavam e dando ordem na cozinha. Montes Claros servia de pouso para baianos que iam arrumar negócios em BH, como acontecia com meu pai, que ali nos deixara com mãe e seguira viagem.

Nessas férias de 1970 mãe aprontou a meninada para ir ao cinema da Praça Coronel Ribeiro, logo abaixo, assistir ao filme Meu Pé de Laranja Lima, pelas mãos de Zé, um pouco mais velho que eu e que conhecia bem a cidade e ia mostrando as coisas:

- Ali é o Automóvel Clube.

- Picolé bom é de coco queimado.

- Não é  “policinha” de crianças não, são escoteiros.

Mas o que mais me aguçava a curiosidade era saber que diabo de doença sofria o pai de Andréia e Quinho, sempre naquele quarto socorrido pela esposa, que fumava um cigarro atrás do outro. Num descuido dos adultos, um dia reparei que para urinar ele o fazia através de uma mangueira.

- Menino!

A mulher fechou de repente a porta que estava entreaberta. Horas depois, cumprida a tarefa habitual, ela, cansada, queixou-se para minha mãe, que engomava nossas roupas, do sofrimento com o marido naquele estado.

- Até fiz uma promessa: se ele tiver cura... – deu uma pausa para expelir a fumaça do cigarro e nisso eu pensei “ela vai deixar de fumar” mas não, ela simplesmente completou, para meu espanto:  - eu vou cortar o cabelo de Andréia curtinho.

Ôxe. Que promessa!

À noite, tia Preta – descanso da guerreira, com um problema no tornozelo cinturado (soube depois que tinha sido o cordão umbilical ao nascer) – sentava em seu trono para assistir a novela O homem que deve morrer. Até hoje eu não sei porque esse homem (que me pareceu agora ter sido papel do ator Jardel Filho) devia morrer. O que sei mesmo é do menino que não devia crescer.


08.06.2015

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Entrei no blog, passei o olho e antes de ler o texto pensei: Tio George é meu Manoel de Barros. Lendo tive certeza! Beijo, tio! Cacá

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