Deu quase de tudo que se
pode imaginar de uma prisão. De sentimento de solidão, revolta de passarinho
bravo, querendo voar com gaiola e tudo ou arrebentar cadeados, boca de choro
sem que a mãe estivesse por perto, depois visita de conhecidos e até
evangélicos, doação de cigarros e lanches pela grade, ameaça de manifestações
de solidariedade pelo lado de fora, até afrouxamento de gola de camisa e, por
fim, entrega nas mãos de Deus.
Tudo isso num curto
espaço de tempo. Curto? Vá você ficar pelo menos 50 minutos de prisão para
saber o que é o tempo. Tantos presos que já consegui tirar da cadeia e eu ali
sem poder impetrar um habeas
corpus em causa própria em
velocidade de internet. Pensei até nos personagens de Franz Kafka.
Claro que se tratava de
uma prisão domiciliar, digamos assim, mas e daí? Prisão é prisão. Estava tudo
certo, como de costume. A mulher saíra mais cedo para trabalhar e, tal como uma
das pombas do poema de Raimundo Correia, lá se ia a outra pomba quando, barba
feita, bem arrumado, pasta com papeis e documentos necessários para a peleja
diária, fui tirar o carro da garagem e não encontrei o controle remoto do
portão. Com certeza a mulher teria levado os dois aparelhinhos, foi o que pensei.
Para quem estava certo
de que logo estaria a caminho dos compromissos e ter que agora atrasar-se, isso
numa segunda-feira...
- Não, meu bem; procure
direitinho porque eu estou apenas com o meu controle. Procure aí, depois você
me liga, que eu estou ocupada no momento.
- Você não entendeu:
estou preso.
Disse que ligava depois
– desprezo da família. Esbocei cara de choro, mas sem ninguém por perto. Olhei
para os meus gatos, que ainda devoravam a ração sabor peixe que eu havia
colocado minutos atrás, mas, lembrando Cartola, os gatos não falam, eles
simplesmente fazem chantagem até conseguirem o que querem.
Nessas conjecturas,
telefone de novo. Família é família:
- Você olhou direitinho
dentro do carro?
Voz de preso,
injustiçado:
- Claro que olhei senão
não teria ligado.
- Liguei pra empresa que
instalou o portão. Preste atenção: pegue a chavinha que está na fruteira da
mesa da sala, abra a caixa e desligue o sistema. Depois é só empurrar o portão.
Normal.
O portão ficou mais
firme do que com a coisa ligada. Normal o cassete. Dona Elvira apareceu no
portãozinho e, cumprimentos e tal, me deu um pedaço de chimango. Duas mulheres
com roupa de crente vieram em seguida. Se eu já tinha lido a bíblia, queriam
saber.
- Já.
- No capítulo...
- Não, dona, não me
lembro assim de capítulo... com licença, o telefone.
- Conseguiu?
- Consegui desligar, mas
quem é que vai empurrar o portão? ... Tá, dona, obrigado pelos santinhos.
- Que estória é esta de
santinho?
- É que eu acabei de
receber visita de evangélicos, que deixaram uns folhetos no portãozinho e
saíram insatisfeitas porque eu me esqueci e falei santinhos. Ah, afinal, estou
preso.
- Se for o caso e
você puder me esperar uns 30 minutos, então eu vou aí, mas procure direito no
carro.
Procurar mais por onde?
- Oi, seu Roxinho. Nada
não: portão com problema pra abrir – e tome explicações.
Seu Roxinho falou de um
genro que mora em S. Paulo e que trabalha na instalação desses portões. Queria
ligar e pedir instrução. Era só um pulinho até sua casa e pegar o número do
telefone.
Nisso, mais pessoas,
sabedoras da situação, foram se aglomerando em volta do portãozinho. Seu
Roxinho me passou um cigarro e me pediu calma. Notei que uns iam passando para
os que chegavam informação com versões diferentes. Mas eu não tinha ali
um assessor de comunicação, um porta voz, um advogado, embora fosse um advogado
em causa própria, numa segundona me esperando lá fora, no escritório, no fórum
e... telefone:
- Fale!
- Você já olhou direito
no carro.
- Ah, meu Deus, claro
que já olhei... lugar de costume... não achei porra de controle nenhum.
- Pois olhe nos lugares
fora do costume.
Não é que fui olhar e
encontrei o treco encaixado num lugar decente, que devia até ser o de costume
mas para mim não era: na véspera tinha recebido o carro do lavador e o sacana
dera uma grau no painel e colocara o controle num lugarzinho apropriado
para guarda de controle que eu nunca iria descobrir.
Resolvido. Tempo de
cárcere: 50 minutos. E quanta coisa e reflexões aconteceram. Nó de gravata já
folgado, por conselho de seu Roxinho, portão se abrindo para o mundo, que me
esperava, me senti como aquele personagem do filme “O expresso da meia-noite”, e aí compreendi
melhor o porque de sua saída em câmera lenta, de tanta ânsia, ao vislumbrar a
liberdade diante de si.
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