domingo, 29 de novembro de 2020

As duas mortes de Sinhá Maria de Orlindo

 


Esclareço aqui uma ponta deixada solta em página anterior.  Um adendo. Acho que só eu e vovó Etelvina guardamos esse segredo: sinhá Maria de Orlindo experimentara a morte antes de morrer de vez. Ela caíra doente e estava moribunda. Morava na Rua Presidente Vargas, numa casa de boa fachada com comércio ao lado, de seu marido, seu Orlindo. Porque o comércio dela, Sinhá Maria de Orlindo, era dentro de casa, na sala, onde havia espaço para, além da venda bem sortida, um presépio (lapinha), muito visitado por sinal.

Ambos comerciantes, dos tradicionais na cidade de Candiba, eram figuras folclóricas. As coleguinhas, no Curso de Admissão, em 1971, subindo a Rua Presidente Vargas, passavam por lá e compravam bala doce. Mas oh que tristeza das meninas chupando as balas que sinhá Maria já havia desembrulhado, chupado e enrolado, de volta, no mesmo papel, pronto para venda, mania de velha voltando a ser criança.

Tome vergonha, Rock, deixe de mentira!” ralhava eu, envergonhado.

Podia ser mentira de Rock (torcia para isso), porque eu gostava de uma delas e não ia cair bem mesmo tal arte da velha, “eco”, pensei na hora. Mas ficou essa resenha e foi chato ver minha coleguinha abrir a bolsa e se desfazer de um pacote de balas.

O ambiente ficou nojento, até que na descida  da Escola apareceu para salvar a situação foi tia Lô, que falou da hipótese, que eu logo acolhi, de as balas se encontrarem umedecidas por conta do tempo chuvoso, que não eram por chupação de Sinhá Maria não, que era abuso da molecada mesmo, aproveitando-se da idosa.

 “Tome!” olhei para Rock, que inventara aquilo.

 Ela, nesse papo com vovó, queixava-se apontando quando por ali passavam as meninas, que eram “suas freguesas” mas que nunca mais. E falou também que tinha morrido e que estivera num lugar que parecia ser o céu, que lá existiam no local umas hortas de encher os olhos com plantação de alface, couve - o cotidiano que ela mantinha cá. Com a diferença, que era coisa de qualidade.

A gente comentava que ela relatava para vovó que tomava banho no quintal e depois molhava a horta com aproveitamento da água da bacia, que ficava uma maravilha ver as alfaces ao sol da tarde. Resultado: perdeu outra freguesa.

E como era um casal de velhos, independentes, cada um dono de si, com seu comércio, diziam as más línguas que ficava um torcendo para o outro morrer logo. E estranhamente, Sinhá Maria é que venceu a parada. Semanas depois, para nossa surpresa, enterramos seu Orlindo, que não estava programado. Numa segunda feira cedo, antes de irmos para Guanambi, conforme era costume da região, sepultamos seu Orlindo, com outra cova aberta do lado (prevenção).

O enterro de Sinhá Maria de Orlindo foi daí alguns dias quando ela acabou morrendo de vez (a segunda), que foi um chororô na Rua Presidente Vargas, enquanto o comércio de ambos e casa de morada eram disputados por herdeiros que chegavam, para início de uma nova era.

 

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