quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Selinho

 

 


Magda, aluna de faculdade de tempos pretéritos, agora dona de estabelecimento de ensino médio, pediu carona ao seu antigo professor, com selinho de despedida nos agradecimentos. O selinho caracterizava-se pela sua rapidez, quando a pessoa se erguia, com a pontinha da língua, voltando da boca, como autor do gol. Tinha que recordar o decorrido nesse ínterim.

 Muita adrenalina para chegar até ali. Carregava alguns detalhes sobre Magda Marcelina que poderiam definir a incógnita Magda Marcelina. Ou pelo menos arranjar pinceladas importantes para imagem. Mas tudo nela era de prestígio ou de influência zero. Meio oito ou oitenta. Via-se que era uma mulher graúda, dessas que abraçavam seu direito e não arredavam o pé.

 Parecia ter sido menina precoce, de ver satisfeitos seus desejos ao vislumbre de berros reivindicatórios. Lembrou-se dela adolescente abrindo uma mochila de livros quando fora colega de sua prima vestibulanda. Tinha uma caligrafia graúda, de bom visual, que punha de sobressalto o então leitor desavisado. Recolheria de plano tímido desejo.

Tempos depois, ela também se sentaria, atenciosa, na frente na sua sala de aula na faculdade, e estaria irredutível nas lides trabalhistas de empregados não fosse acenada para uma composição amigável. Olhara bem para Magda nesse período, num ela sorria leve ao perscrutar uma tolerância do professor na questão de avaliação, noutro notara seu jeito ardiloso de manipular provas dos autos.

Era uma mulher resolvendo os abacaxis sem marido a tiracolo. Por ocasião dos processos, o jovem preposto da empresa impunha a Magda uma performance de comando. Ou talvez carregasse o detalhe nas duas argolas em destaque, que acenavam  independência de divorciada.

Na estrada o silêncio de ambos falava mais alto. Tratamento respeitoso, lado a lado, desencontros de vidas, conhecimento e reconhecimentos profissionais.  Sem esforço, até que, adiante, no ponto de parada, teve que se inclinar para abrir a porta para a empresária Magda Marcelina caronista escapar e, livre, voar, quem o saberia para onde.

Acabou cedendo um beijo ou a um beijo. Quando menos se esperava, aquele boca a boca com Magda.  Ninguém para impedir, apartar, pisar os freios inibitórios. Nenhuma testemunha. Funcionamento ligth dos elementos internos. E ela saiu como se se esperasse pela realização do ato ou não tivera tempo de posar de estranheza, que não era de seu feitio. Um amor devido para aquele momento. Dívida que fora se acumulando daqueles pequenos encontros circunstanciais, agora com elegância em erupção.

Com o selinho, deram-se por entendidos. Em tamanho e charme.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Gisele

 


      

     

Naquele início dos anos 90, para lembrar um ex-colega, estava todo mundo transando e só ele estava na mão.

- Literalmente – gostava de acrescentar à mesa de amigos.

- Porque você quer – disse Vanda, uma das garotas cobiçadas por ele.

Escamoteava sempre, feito peixe fresco tirado do anzol. Não podia esperar grandes coisas dessa menina Vanda. Beto foi chamado de lado. Ela lhe segredou que já estava com outro, que Beto devia ficar com Gisele, que tinha queda por ele desde menina.

- Vou falar para ela te encontrar lá, tá?

Beto engoliu em seco a pergunta que faria sobre como transportar Gisele. Acabou recebendo dela todo o combinado, que muito o surpreendeu.

Nem mais sabia de Gisele, que era garotinha e mancava de uma perna. Agora se apresentava assim, bonita, aos olhos de entusiasmo de Vanda, que ninguém dava pelo defeito físico. Trabalhão enorme conduzir-se em meio às pessoas, cuidado aqui e acolá na passagem, “com licença’, “com licença”, “desculpe”, “desculpe”. Muito se constrangera na época de ginásio, nas vezes que, por imposição de professores, era tirado para dançar com ela. Questão de direitos humanos, esse beabá todo, que, como bom garoto, teve que tolerar e servir de exemplo.

- Você precisa ver agora!

Sim, mas Gisele via Beto e se acomodara diante do desligamento por parte dele, mais volvido pelos ambientes das “gentes sérias”. E se passasse gente da turma e os reconhecesse? Como ficaria ele com essa garota manca em contraste com seu jeito hábil e viril? Seria um escândalo, que retornaria com outros moldes, mas que podia ser evitado não fosse essa sua tara. Depois, Vanda não estaria  metendo-o numa fria? Ela era amiga de Gisele, não ia fazer tal presepada. Mais que ligeiro, Beto tinha que ir ao encontro dessa nova Gisele. Então virou o copo de cerveja e avisou ao garçom:

- Essa rodada é minha! – disse e saiu como que em busca de um prêmio, descoberto debaixo de sete chaves.

 Para completar, um besouro da luz viajou em sua direção. Afastou-o com um safanão e entrou no carro acreditando ter-lhe ocorrido uma mensagem naquele instante. Algo apanhado no ar, como trilhar pela cautela. Seria refrear seu ímpeto, sob pena de se queimar nas chamas frias da desilusão.

Foi chegar e correr para o abraço num estado de fúria, os dois se desejando, palavras escapulidas na pressa, na ânsia do desvencilhar de coisas estranhas ao ato. Não precisou pronunciar sequer um A. Mãos e pernas se comunicaram em afagos e esfregações, como se reencontrassem após longa ausência.

Aquele encontro com Gisele foi de romper a bolha, com um mulheraço gemendo nos seus braços, sem que se desse por encoberto defeito.


segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Garota da calçada

 


 Sua presença conversando com os cabelos, em frente à sua casa, por volta das cinco da tarde, quando Edu passava pelo quarteirão fazendo bicicleta, era talvez a única certeza do dia. Não dizia nada, apenas apreciava a garota em seu ritual lúdico e ia se dando por satisfeito, até que um dia estranhou a sua falta. Após essa frustração, sem esse facho de alegria juvenil, partiu para colher do casal vizinho do lado informações a respeito dela:

- Cadê uma menina que brincava aqui todo dia nesse horário?

- Foi embora. A família levou de volta pra roça.

“Filhos das putas!” – pensou Edu. Levaram também a tessitura de um cotidiano de rua, que se sabia triste, de um tipo especial, mas que figurava no cenário. Agora destemperava o instante.

Apenas para se situar, nem sabia da classificação da doença. Também não queria ciência por perto, mas aquela arte de expressão corporal, sem a qual não se realizava o romper de vida.

 Depois, ao formular perguntas sobre a menina da rua, passaria a ser tomado por andar na solidariedade com  “doido”. Alguns foram até solícitos, outros nem tanto. Em resumo, a garota era de uma “família de malucos”. Encobria-se qualquer discussão:

- Por que ela ficava como se falasse com a ponta do cabelo? – perguntava Edu.

- Um sestro, não? – justificava um dos moradores.

Após ter vagado costumeiramente pelas ruas de bicicleta, sentiu-se incomodado por aquela ausência. Estando ela na calçada de casa, aproximou-se um dia com um princípio de papo:

- Por que você não veio ontem, hein?

Ela não respondeu, porque não era costume lhe prestarem assunto. Edu também não esperava por resposta. O importante era ela ali, no quadro vespertino. Até que deu de querer ir na zona rural atrás dela. Não esperava causar a celeuma que se instalou pelos cantos.

- Um chefe de família, aposentado, cuidando desses assuntos, sem utilidade alguma, é não ter o que fazer– ouvia-se no diário como uma cantiga.

Droga, só falou com seu jardineiro:

- Como é mesmo o nome dela?

Pelo menos o nome, para guardar. Nem isso.

domingo, 5 de novembro de 2023

Brenda

 

 

            Havia uma no meio delas que, via-se logo, não era para seu bico. Era luz que brilhava lá de cima e iluminava todo o ambiente. Tesouro que se expunha a interesses fantasiosos. Por isso corriam os dias sem segredo, sem qualquer novidade. Charme e beleza. Ela caminhou até a mesa de Beto e, despachada, bradou:

‘           - Não te quero mais com essa pasta executiva velha e feia. Vou comprar uma nova. Você vai trocar. Certo?

             E encostava para falar com Beto, com charme, ao seu modo, e tudo.

            - Ela pegou no seu pé, mesmo, cara – dizia-se.

Brenda, sem as algemas, era uma mulher perigosa, de difícil convívio:

            - Só Marcos para agüentar – dizia-se.

            Era um amigo, para quem estava prestando serviço. Reclamava feito uma metralhadora, dessas  giratórias, e lançava nomes escabrosos. Tirava lascas de todos que ali estavam. Causou grande escândalo numa discussão de transito com o outro motorista. Tantas faíscas saiam desses litígios, que prometiam ato de monstruosidade em praça pública, em pleno sol de meio dia.

            - Pensando o quê? – dizia recobrando o fôlego.

            - Calma, tia – tratava-a assim, para tranqüilidade da nação.

Depois, quem ia ligar para esses espetáculos dados por tia Brenda?

- Ela pode – ouvia-se por perto de algum fã.

De outra feita, olharam-se demoradamente e, bocas murmurantes, tanto o desejo, que quase se adivinharam em beijo, mas o momento rompeu-se num clarão, sem que alguém desse por  fé.

- Gostou da pasta nova? – perguntava para disfarçar a vermelhidão no rosto dele.

- Adorei. Já estou usando.

“Presente de tia Brenda”,  costumava responder aos curiosos. E o véu que encobria esse relacionamento prosseguia na sua firmeza. Nenhum sinal nos céus de alvissareiros, até quando ela apareceu com aquelas conversa no quente, na base da pressão do absurdo:

- Então já que você não vai, me arranja aí um livro emprestado, que eu vim aqui para isso para todos os efeitos.

Passou a mão aleatoriamente num livro da estante e bateu em retirada toda uma aura do deslumbre.

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Vibração

 


         Tremia ao simples toque de mãos. E ainda vibrava quando soltava, que “vinha gente”. E era graúda. Um tipão. Imaginou essa garota assim entre seus braços. Nesse treme-treme de corpo pedindo. Embaixo estava naquele estado que só um banheiro por perto para socorro, um relp. E os tapas que levava a cada aperto, a cada afago,  até a prensada na parede, quando distante a possibilidade de gente chegando! Já nem procurava mais se defender. Gostoso o perfume raso deixado após custoso desenlace.

- Suado, Edu! – ouvia-se adiante, recompondo-se, quando se desgrudavam um do outro.

Tinha-se como impossível um “namoro” entre eles, então era nesse lusco-fusco que tinha se imposto. Cada oportunidade era sem desperdício. Naquela labuta, não havia bagaço de cana pelo chão onde pisavam, repisavam e sapateavam.

- Vamos parar por aqui, Edu – deu uma ordem Eliene.

- Não fale assim não., Eliene. Só um pouquinho.

- Não posso alimentar esperança porque você...

Aproveitou que estava acabado o que nunca começou e tampou a boca de Eliene com um beijo, que ela aceitou, e uma encostada na parede, por fim..

- A gente fica sob protestos, já que a gente não pode e eu pergunto agora por quê?

- Ah, vocês... Sua família vai mesmo aceitar essa Eliene? Eliene  de quê? O quê? Essa menina vai interromper seus estudos?

- A gente vai rompendo... – falou quase sussurrando.

Ela estremeceu e de imediato se encolheu, bonitinha.

- Vou é embora! – disse e saiu.

Ficou por um longo tempo refletindo sobre esse rompimento de um relacionamento que nem aconteceu. Também ela iria fazer vestibular. Custava nada um namoro, porque a questão era mais de atração física de adolescente. Não se admitia pretender a garota sem a pretensão matrimonial. Edu até entendia esse lado mas não concordava. O mais certo, porém, era deixar de ver Eliene e se contentar com a lembrança de um dia, sob recusas, haver tocado uma garota e sentido aquela sua vibração. E uma vibração igual a de Eliene  não existia outra igual.

domingo, 29 de outubro de 2023

O calcanhar

 



 

Melhor presente que lhe podiam ter arranjado. O problema era o aperto no calcanhar de aquiles. Não se podia acolher acusação de culpar apenas pela proximidade de suposto agressor. Não houvesse ninguém por perto, ela nomearia culpado objeto inamovível.  Sempre assim. Forma fácil de se colar às costas o termo responsabilidade.  Bem sabia a porta que prendia o dedo ou o telefone com notícia desagradável.

- Você me irrita.

Não tirava a trava dos olhos para descobrir que o problema que também morava com ela era ela própria. Nunca dizia, em sua defesa, nada nesse sentido. Achava ter demorado muito para apontar nela essa falta. Enquanto, por outro lado, corria a adrenalina. E aqui merecia também uma digressão. Esse suposto agressor já carregava consigo um tipo de complexo de profundo medo. Daí, após tortuoso percurso, essa tardia descoberta.

 Agora como saber portar-se diante dessa nova realidade? Andara como que pisando em ovos, se policiando, com receios de recaídas ou verdades ocultas se revelando, quando nem pretendia enfrentá-las. Para alcançar êxito, iria pelas beiradas. Por exemplo, não mais deixar ventilar assunto, que morreria ali mesmo. Só nos gestos, em complacência, manteriam entendimento mútuo desse disfarce,

Ser irritada implicava, por lógica, que alguém praticara a ação. No caso dela, se  ele discordava dos conceitos que ela guardava das coisas, era ele que praticava a ação. E ponto final, não importava que ele nem sequer tivesse deixado de exercer esse direito de ação.

Descobrira também, como prêmio de maturidade,  nesse processo de convivência, a sensação de haver alcançada a nobre compreensão das coisas.

***

  


quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Samanta

 

 


                   

Samanta era o seu nome. Se não era, passava a ser dali em diante. Adolescente de arrancados pedaços. Pelo menos, um nome bonito já levantava o astral. O resto era o famoso “banho de loja”. Nem tanto banho assim, mas um traje decente, sem imponência alguma, nem “flor no cabelo”, como cantava o poeta. Samanta merecia música, tanto que aproveitou o violão e fez uma para ela. Depois cantarolou. Sem alteração de semblante, ela ouviu a canção. Empolgação, num improvisado prelúdio de sexta-feira, só a do autor. E ela, sem entusiasmo algum, ali figurava servindo às mesas.

O que mais esmorecia Beto, no seu terceiro trago, era a timidez de Samanta. Não tinha o ímpeto de falar com sua chefe: Quero sair mais cedo e coisa e tal.

- Depois que lavar as louças da pia, ela vai – disse uma senhora com ar de patroa, que escutara dele o oferecimento de carona, como se fizesse um imenso favor.

 

Favor coisa nenhuma! Beto pediu outra cerveja, enquanto a garota tratava de deixar a pia arrumada. Lembrou-se da canção de Odair José, que homenageava a empregada doméstica, e sob o efeito da bebida começou a se sentir o tal. Queria entrar no universo de Samanta. Ser o seu herói. Ideia brega? Mas nessas brincadeiras, que beiravam o ridículo, tinha sentido. Ou não?

Eu vou tirar você desse lugar - cantou baixinho trecho da canção,  erguendo o copo de cerveja.

A canção, no entanto, era de uma outra época. Não dizia respeito a vida levada por Samanta. Mas eis que estava manobrando o carro com uma mocinha dentro. Notou que Samanta, pobrezinha, assim do lado, era uma invisível. Também não conversava,

 - Era seu horário de saída?

 - Um pouco mais cedo – disse Samanta.

- Eu trouxe umas coisinhas pra você vestir pra mim e ficar menos triste.

 Beto não esperou por resposta e falou entregando-lhe uma sacola:

 - Comprei umas coisinhas pra você. Têm aí umas roupinhas, umas langeries, blusas e uma calça jeans, no jeito de vestir, tamanho “M”.

Só Beto falava:

 - Vou deixar você em sua casa. Quero que você ponha a roupa nova pra mim, tá? Vou esperar você se aprontar.

- Me deixe aqui.

Queria se preservar em relação à irmãzinha. Então seguiu sozinha. Tomaria logo um banho e viria ficar com Beto ali por perto num barzinho. Beto viu a garota se afastar com a sacola, mas sem nenhuma pose característica.   Deixaria seu molejo para quando se aprontasse ou, macambúzia, se recolheria simplesmente?

Tomava umas cervejas, enquanto espiava a porta do boteco de minuto a minuto, até que resolveu demorar-se nesse assanhamento. E assim permaneceria até que se sentiu, em surpresa, duas mãos femininas lhe tamparem as vistas.  Quando recobrou a visão, deparou-se com uma garota cheirosa de nome Samanta.  Era a dele.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Ovo de cocá

 


 

 

           

            Nuance de uma garota que parecia assegurar antigo amor de ginásio. Imaginou-a saindo do banho atoalhada, recendendo à lavanda.. O dia se dando em cumprimento. O gato deixando sua cauda enroscar nas pernas do seu dono e ninguém gritava ao portão.

Tentava assim catar por trás ao ajustar com a mão o membro, que, escorregadio, se escapava mas, numa chamada, voltava para seu lugar de conforto. Havia expressão de gozo nessa escapada, quando conseguia encaixar, com toalha em queda e mãos grudadas nas ancas de Lílian, agora arqueada e com respiração de Beto cada vez mais frenética:

- Lílian, pequena, você me mata – conseguia dizer.

Fora esse lance, o outro que também marcou: o corpo da pequena Lílian estirado na cama, nudez com morrinhos, tudo no estilo ovo de cocá como diminuta e concentrada ela se apresentava.

Depois era isso, sensação de grandeza penetrando um ínfimo que elastecia, sabia-se lá como. Coisas que aconteciam, após um namoro de boa prosa, tanta tranquilidade, de tal forma que ao se despedir de Lílian, teve que ouvir dela uma obviedade:

            - Beto, você esqueceu que eu sou puta?

            Enfiou a mão no bolso e tirou dinheiro da carteira. Era uma princesinha.

           

domingo, 8 de outubro de 2023

Domingo numa birosca

 

 

 

 

                                                               

Beto ia passar o domingo assim, numa birosca daquelas, com Zizi de companheiro, de olho aceso numas meninas, com um violão e uma revistinha das canções de Roberto Carlos? E havia outra opção para quem andava com dinheiro curto no bolso ou nem isso?

- Mais uma, comadre! – pedia Zizi para alegrar a mesa.

Vinha a dona com a cerveja. Zizi provocava:

- Qual é mesmo o caso daquelas duas ali, Dona?

- Solteiras.

Dona era espirituosa ou sacana nas respostas que dava. Vez em quando, ela soltava uma das suas: “Sai fora, tem gente no pedaço” ou então: “Ela não gosta de menino não.”

Assim, pelo balanço que Beto pôde fazer, ela quis com “solteiras” dizer liberadas. Cantou Proposta do Rei para ela, que logo ficou encaixada ao ambiente. E Zizi, meio tomado, querendo trazer as duas para a mesa.

- Calma, Zi – pedia Beto, que conhecia bem as cachaças de Zizi.

E voltava a atenção para o instrumento. Viajava na canção. Até que prestou atenção na parceira da gordinha e viu um jeito nela de tardes de domingos. Precisava dizer dessas tardes a ela., que procurava cantar no tom.  Beto encerrou e deu uma escorregada para o banheiro. 

 

 

Na volta da toalete conversou com a gordinha. Nem foi conversa, foi telepatia. Ficou de Beto levar Zizi para casa e voltar mais tarde para casa dela, ali mesmo na rua, prédio em construção, que elas também tinham que tomar um banho.

- Pra renovar! – gritou para Beto que, agora armado, pedia a “saideira” e voltava para o seu Roberto Carlos .

Era o domingo se revelando. Conforme combinado, com muita peleja conseguiu colocar Zizi no carro;

- Não, Zizi, as meninas vão tomar um banho.

 -  Então me deixe  num barzinho novo perto de casa.

 

Mas o domingo não se realizaria se fosse dormir sem passar pelos braços de Dany.

-  Não repare, não terminei ainda – desculpava-se a dona da casa.

Paredes sem rebocos, pontas de ferro e restos de materiais de construção. Ia caminhando com cuidados.

- Quem chamou? - perguntou Beto diante da naturalidade da dona da casa.

Um louro chamava Dany. Ela  apresentava a casa e ia se explicando, que Dany mesmo tinha tomado banho e estava dormindo. Que ele sentasse, tomasse uma latinha (foi até a geladeira) e esperasse por Dany.

- Tem que avisar o louro.

Ela sorriu com a piada e  teceu comentário sobre os costumes do papagaio.

- Pode acordar Dany, louro. Chega de dormir.

- Se ela estiver dormindo mesmo, deixe dormir – falou Beto abrindo a latinha.

- Acabei de dar um banho nela para ver se melhora, mas agora já tá boa, renovada, entre lá no quarto – garantiu a gordinha.

- ?

- Por ali. Fique a vontade.

Seu astral foi   para cima! Um quarto de solteira de tirar o chapéu.

- Como diz uma amiga minha “seu quaro é de Londres”.

Fechou a porta:

- Vou deixar vocês às sós – escutou Beto.

Dany estava atoalhada na cama dormindo. Aproveitou e foi no ouvido dela e disse um  “pode ficar assim  mesmo, darling”.  Quando se viu estava por cima dando uns tratos. Quem era mesmo de Londres era Dany de toalha, que podia mexer num abre e fecha. Após uns cumprimentos na parte superior, Beto foi escorregando de boca até encontrar um poço a perfurar e ali gastou uns minutos apreciando os grunhidos de Dany, quando resolveu entrar e tomar pé. E para completar Dany era quem no exato instante lhe agradecia ao ouvido: “Obrigada!”,  sem o que não ganharia aquele domingo.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Edite


 

 

Não era uma garota branca de feiura, mas de ausentes traços aparentes de beleza. A questão não era saber e sim entender. E ele guardava consigo esse entendimento. Por debaixo daquela blusa de Edite, saltavam uns seios mais arrumados do mundo. Tocá-los era sensação de chegada ao monte do Everest ou algo parecido, cume de uma perfeição que maravilhava em demorada contemplação. Isso num ambiente a dois, em silêncio. Silêncio das montanhas. Para completar, tinha também de positivo os cabelos louros e sedosos. Ficava até o horário de fechamento dos barzinhos. Era uma das últimas a sair. Um conhecido passou por ali e viu Beto com ela à mesa.

- Como é que você se senta com aquele inseto? – pergunta que dias depois fingiu não escutar.

Também não dera seguimento ao papo. Dava uma cortada em conversas como essas, que ricocheteavam ofensa à pessoa humana. Além dó mais, não via essa feiura na moça. Aliás, nem olhava. E, quando um dia parou para ver, preferiu voltar-se no estalo daquele olhar, lembrando-se de sua mãe quando se deparava com pessoa assim:

- É de doer.

Por mais que ela se ajustasse no traje, mas devia em encanto e graça. De outra feita, a colega demorou no papo, se achando, até descobrir que ela era quem estava sobrando ali e então se ergueu num gesto de solidariedade a amiga Edite.

 Sem defeitos físicos ou outras anormalidades, Beto passou a manter Edite como sigilo. Não iria dar com a língua nos dentes. Falar de quê? De roupas? Da prosa? Não se enfeitava, andava no luxo modesto, pouca prosa. Moça que apenas se prestava ao papel de uma acompanhante e seus mistérios. Decerto que podiam pensar que diabos queria aquele cara com uma menina feia daquelas? De sua parte, nunca iriam saber. Da impressão táctil das suas mãos no deslizar macio sobre os seios montanhosos ou do sono leve para onde o levavam os caminhos da seda no descanso de guerreiro, depois de bebedeiras.

Tinha que terminar o caso. Descobria que ninguém dava importância ao fato. Seus scraps apaixonados morreram com o Orkut. Precisava conversar com alguém, mas jamais iria procurar aquele que utilizou uma palavra horrível para se referir a uma pessoa, uma mulher.  Não valia a pena dar espaço de diálogo a um cara daquele. Então ligaria para Edite, antes de se programar para noite.

- Descobri mais uma coisa de você – disse ao telefone.

- O quê? – espantou-se Edite.

- Sua voz é bonita. Com uns treinos, já pode trabalhar numa rádio.

- Sério?

Depois, aprontando-se para um último encontro, lembrou-se dos versos de Manuel Bandeira: Como deve ser bom gostar de uma feia!

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

DORA

 

1.

 

- Uns 150 km! – gritou o moço da borracharia.

Edu gravou na mente a informação, porque naquele ermo não havia placas e ele tinha que retomar a estrada principal. Mentalizar também que na vida, mar de utilidades e inutilidades, de perdidos, achados e descobertas, tudo se pautava no devido tempo. Sem pressa. Muito chão. Devia chegar lá por volta das oito da noite. 

            A vida lhe aparecia arreganhada, por um ângulo, mas não iria deixar-se conduzir por aí. Calma. Estava presenciando uma mudança. Democracia acima de tudo. Nada desses métodos autoritários. Isso estava sendo ultrapassado.  Dizia o momento político do país, nas fachadas dos muros de ontem as frases de combate de sempre, depois de mais de vinte anos de uma Ditadura Militar, de difícil desgrude. Quando se pensava haver superado trecho de lama, descobria-se na bainha da calça um respingo. Fazia lembrar canção de Chico  Buarque de Holanda: “A gente vai levando ”.

            Numa breve retrospectiva, logo no segundo semestre, tentara um concurso público para a polícia federal e nele deixou de assinalar alternativa correta que envolvia questão de hierarquia. Nem pensou:

- Não nasci para soldado - e assinalou uma outra, bancando o democrata de esquerda, que combinava melhor com a barba.

Até que mais adiante, se descobriu no bolso uma ordem de um famoso deputado federal para um contrato de estagiário.

- Todo mundo? E os outros? – perguntava ao colega, estagiário remunerado.

.- Não, os outros são voluntários – dizia o colega Ramon.

- Então não quero. Só porque fui indicado por influência política?

E não aceitou mesmo, tendo o papel se desmanchado no bolso, com o “autorizo” do deputado. Ramon chegou a comentar

- É bom não está precisando, velho, mas era o ideal. Se outros ficaram de fora você não tem culpa. É revoltante, mas é assim que anda.

Graças a Deus – pensou Edu, visualizando a estrada em frente. Interessante esse sentimento de que não havia uma paralisação para se ingressar no jogo, que já estava ocorrendo. E ele ainda com uns lampejos desses.

.- Loucura, olhe a bola! – gritava alguém de uma antiga peleja.

Tinha que se sacudir por vezes. Deixar assentarem as idéias para uma melhor organicidade. Conter, domar a fera que existia dentro de si. Saber entrar:

- Toca! – tabelava com a experiência que iria aos poucos acumular.

O desenho era esse. Competia a ele, em respeitos às regras, dar realidade ao idealizado e pronto. Vencidos os desvios, retomara a estrada principal e nem se dera por isso, entretido que estava. A serra que avistava ao alto era sinal de chegada, antes de clima alvissareiro, agora nem tanto,

2.

 

Amanhecera o dia com cara de trabalho à espera, tendo que acompanhar o caso de um rapaz tonto acusado de “espiar” lavadeiras  na lagoa. O pai dele já estava à porta. Era um trabalhador rural a final de contas. Primário, bons antecedentes, com os requisitos de liberdade provisória e não havia certeza de que estava masturbando no momento de flagrante. Conversara com o delegado, que pareceu acolher mais a origem do defensor que o argumento jurídico de relaxamento da prisão.

- Seu pais são pessoas maravilhosas, Doutor. Dona Matilde me ligou mais cedo.

 Ficou entendido, de leve, haver levado um a zero da família. Sua sombra de poder era enorme. Saíra com o cliente até lá fora, onde os pais dele o aguardavam numa charrete.  Em vez de ganhos, gastou ali explicações para conforto moral de pai e filho, ambos assustados. Correu os olhos em volta em busca do moço com seu carro, um cara que lhe arranjaram de companheiro naquela diligência.

- Aqui, Doutor.

Ele acenava de um barzinho, para onde trouxera o carro, já lavado e lustrando ao sol da manhã, como menino de banho tomado.

- Ficou novo em folha – disse.

- Edvaldo, Doutor – respondeu apresentando-se.

- Oxi, você não é um que esteve envolvido num caso de rapto de uma menor?

-  Ah, o Doutor lembra disso? Faz tempo.  Era uma namorada. Na época, os pais dela eram contra. Mas já casamos, Doutor, e até separamos.

- Diziam que você era perigoso, violento, essas coisas todas... – Edu ia puxar o fio da meada de um passado mas se conteve.

- Diziam muita coisa, né, Doutor?

E foi da prosa com Edvaldo que Edu acabou por fazer um apanhado da conjuntura. Não podia entrar em campo e perguntar a que horas começava a partida. A política local estava fervilhando. Queria avisar que entraria, mas, inconsciente, já estava fazendo parte. A notícia da soltura de um lavrador da cadeia corria em detalhes pela cidade. que o novo advogado falou isso e aquilo para o delegado aceitar. Não tinha essa de ir atrás desmentindo, passava-se adiante.

- Amanhã temos que comparecer na Fazenda Pau de Ferro para fazer um acordo na distribuição de água à comunidade local – lembrava a sua agenda o secretário improvisado.

- Dizem que a votação de lá vai melhorar pra nós – retornava Edvaldo.

Na realidade, só iria tomar por termo um ajuste amigável (já conversado entre as partes) para por fim a demanda judicial e acalmar os ânimos dos moradores. Muito importante o termo. Um dos presentes guardava uma folha amarela. Um texto datilografado, que demonstrava como foi acordado à época.

 E outros episódios dessa ajuda compulsória à atividade profissional foram surgindo mais adiante. Perguntado por seu pai como ía a advocacia, respondia que pegara um inventário e que se maravilhou quando viu o cliente debulhando pacotes de dinheiro sobre a mesa;

- É, meu filho, saiu daqui.

Referia-se ele ao empréstimo que fizera a um fazendeiro naquela manhã. Percebia Edu que com mais essa subia para dois a zero o placar de decepções que carregava.

3.

              Vinha-lhe um vazio e o pensamento de até quando sua carreira iria seguir assim, guiando-se com essa rodinha de proteção. 

            - Deixe essa preocupação pra gente e não pra você, Edu – ouvia de seus colegas nos meios forenses.

Isso ia avolumando na sua cabeça, que já não aguentava mais. Outro dia fora surpreendido por seu parente vendedor lhe entregando um documento de veículo, capacete e uma chave de motocicleta, nem mais nem menos.

- Oxi, Geraldinho, se explique!

- Você não gostou?

O sacana tinha chegado com a moto, depois de algumas peripécias, na frente de sua família, que teceu elogios. E ele de imediato soltou uma das suas:

- Quem gostou mesmo foi Edu, mas disse que não tem o dinheiro.

O velho comprou na hora e fez com que ele viesse trazer o presente. Aí o placar já estava nas alturas, que ele tinha que driblar até o avô, querendo lhe dar o dinheiro para comprar o anel de formatura, a que, infelizmente, não pôde comparecer.

À noite, foi policiar adversários numa da regiões na zona rural, quando de um matagal surgiu Edvaldo na garupa de uma moto:

- Psiu! Doutor, eu posso jogar essa pedra no pára-brisa de uns adversários que estão ali pedindo voto.

Edu viu o tamanho da pedra e pensou nas conseqüências nefastas que poderiam resultar:

- Pelo amor de Deus! De jeito nenhum. Não faça isso.  Deixe eles.

Edvaldo só esperava o estalo de uma autorização para fazer uma desgraça e acabou recebendo dele um não. Era um democrata e não ia chancelar tal conduta, mas ficava feio na foto para eleitores como Edvaldo.

Ao se dirigir para o bar, naquela noite, agradeceria a Deus pelo que  deixara de fazer. Havia um clima de guerra, mas a notícia de que tradicionais adversários políticos teriam sido atingidos com uma pedra, em combate na compra de votos, não seria bem recebido pelo povo. Para o inferno a questão eleitoral, o ferimento seria na consciência da pessoa de formação cristã. Com ele, Edu, estava encerrado essa prática.

Pesaria, no entanto, o fato de ele ter passado a mão numa garota, que rondava os escurinhos da boate e que ele, Edu, descobrira sozinha no ponto de bala:

- Vamos sair daqui, garota? ´- propôs envolvendo-a num abraço.

        Não sabia Edu que essa garota, que coroava sua noite de rei davi,  era, na realidade, Dora, a ex-mulher de Edvaldo, que se despedia da cidade e viajaria para o Sul no dia seguinte.