domingo, 14 de abril de 2024

Chupando picolé

 

 


   

E tudo estava disponível, desflorado, oferecendo-se à sombra, mas com frinchas de sol mostrando o advento de uma nova estação. Edgard havia pagado dívida da esposa no comércio local e, negócio acabado, vinha pelas sarjetas chupando um picolé de groselha. Parecia modernamente epigrafar o que acontecera consigo naquela instante. Descobrira que, após engolido o doce precedente ao nada, o resto estaria em contentar-se com um adocicado pauzinho. “Pagareis o que deveis e vereis o que sobra”, escarafunchou-se da cabeça velho dito popular, e o escolheu por ser de preferência do avô e mais em consonância com o feito. Grande feito: pagar uma dívida pretérita contraída pela parceira na reforma da casa, quando se tinha a impressão de que estava quite..

         De desconfiar, cuidado excessivo na forma de cobrança, necessidade de falar pessoalmente.

            - Ele quer “só vocês dois” – disse ao telefone, baixinho, o filho funcionário.

            Não deixou de pesar esse “só vocês dois”, e ainda estranhava essa imprescindibilidade. Devia ser de relevo. Mas em que setor? Não lhe passava à mente questão financeira. Aliás, foi um choque quando notinhas de compra foram exibidas, com assinaturas dela, todas datadas coisa de um ano atrás, quando, inclusive, o casal andava brigado.

            - O que a gente pode fazer é não cobrar juros. Pague o valor original – falou o dono do crédito, bonzinho.

            Mesmo assim, era de valor considerável e não tinha de dizer mais nada. Era pagar, e pagou com um dinheiro extra que, coincidentemente, ele ganhara naqueles dias e dera passos de contentamento. “Pagareis o que deveis e vereis o que sobra”- explicação para o picolé. Sentimento de dever cumprido. E, como dizia o avô, nada melhor que pagar as dívidas. Seguiria em frente, ora, pois.

            Não acompanhara bem a obra mas recordava de recursos repassados durante sua realização. Passaram por apertos, mas estivera vigilante. Não se sabia do destempero. Ainda mais por ser a mulher pessoa de performance moral e ética. “É temperamental”, como advertiu um médico amigo, confirmando o que seu próprio pai dissera por ocasião do noivado:

- É uma menina boa, mas de vez em guando tem uns calundus...

Do tempo que Edgard teve de convivência com Clarice, tal traço de qualidade psicológica já era para ter sido amenizado ou expurgado. Ficou imaginando sua indignação com o comerciante, a pretexto de alguma fagulha no seu emocional. Decidiu que o credor tinha imensa razão. Clarice não pagou a contento, mas seguro nessa convivência não iria reavivar questiúnculas. Se estava com a importância em conta, melhor que ele, em segredo, pagasse. E foi o que fez.

  

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