terça-feira, 11 de março de 2025

Ana

 

                     Ítalo tomou o café na hora em que a garota apareceu na sala com a bandeja. Jeitosa, a filha do caseiro, foi o que lhe acudiu de momento. Mas estava meio borocoxô. Arrastado para a fazenda, quase que forçado, a família no cerco contra seu relacionamento com Dilma, era o estado em que podia encontrar o menino. Que não era mais menino, mas um acadêmico, graduando em Letras Vernáculas.

                   Ítalo estava agora necessitando de um paracetamol. Estar sob sua influência era uma experiência incrível. Ele experimentou diversos momentos de catarze natural, como ocorreu por ocasião de uma parada para um lanche num posto de combustível à beira da estrada. Era um contentamento obtido por aqueles que se satisfazem com pouco. Passou-lhe à mente lembrança de um furto que praticara quando criança, quando teve que saltar o muro e cair num quintal do vizinho para pegar no pé uma manguita madura. Um momento de ponderação entre o medo, o furto e o proibido. Um olhar para os lados, depois com os braços estendidos em comemoração, como símbolo de felicidade em sua expressão mais íntima. Era tão dele que chegava a se recolher. Um, para não quebrar o encanto; dois, sem estardalhaço, para não perturbar quem ainda não galgou os degraus.

                   Tudo isso vinha a propósito de se encontrar numa inquietação, sem dor localizada. Em termos de localização, era uma dor interna. Não seria o sentimento de ausência?

                            - Pegue a placa da porteira, que está desbotada, e verifique se consegue pintar o nome da fazenda - falou o pai durante o café da manhã, como se fosse uma ordem de trabalho, equivocadamente associando a formação do filho à carreira de um letrista pintor. E ele tinha que aceitar como uma amostra do que estava por vir para preservar a estabilidade.

                  - Seu pai queria que você fizesse pra medicina, mas não deu, né, cara? – era a filha da empregada tomando boca, como dizia a mãe.

                   Percorria o jardim em volta da casa, enquanto escutava o ruído de galinhas garnisés e alguns patos que vinham da lagoa próxima. Pretendia observar a paisagem enquanto cumpria sua sentença. Quem disse que ele deveria apreciar as letras? Portanto, pegue, calce as sandálias de veludo e reconstrua a placa da propriedade rural.

                   - Ana, na próxima vez que for à cidade, traga-me folhas de lixa para lixar essa placa de zinco, um pincel e algumas latas de tinta preta, branca e vermelha, combinado?

                            Depois de resolver a questão da placa, que aguardaria sob o pé de juazeiro (Ana já havia varrido o local), era necessário resolver a questão da horta. Ítalo discutiu a ideia com a família pela manhã. Porém, horas mais tarde, apareceu seu Gerônimo, carregando uma enxada e um enxadão, acompanhado de dois ajudantes:

                   - Sua mãe mandou o senhor marcar o local.

                   Ele havia amadurecido o desejo de cultivar uma horta doméstica ao invés de adquirir uma propriedade rural, que demandaria a contratação de trabalhadores. No entanto, a mãe, talvez com a intenção de satisfazer o filho e conduzi-lo aos negócios agrícolas, não aceitava essa perspectiva. 

                   O dia prosseguia fresco, depois do café gentilmente servido por Ana, toda elegante, quando Ítalo foi pego de surpresa pela chegada de Alda, que dissiparia o clima tenso:

                   - Oi, Ítalo, que saudade! – exclamou a moça com quem já havia trocado alguns abraços escondidos.

                   Alda, disfarçada de entregar correspondências ao seu chefe, aparecia de shorts com uma companheira.

                   - Vai mostrar pra ela a cachoeira, Ítalo – articulava a mãe.

                            Para compensar essa falta, para felicidade da mãe, Ítalo envolveu Alda num abraço de antiga paixão e caminharam entre os galináceos do quintal:

                  - Esse daqui, todo imponente, é meu amigo peru, Alda; aquele de uma tecla “tô-fraco tô-fraco”, barulhento, é o meu amigo cocá, a tal galinha de Angola... Esteja em casa, Alda, e vamos seguindo que eu quero lhe falar.

                   - Também nasci na zona rural, Ítalo,  os bichos são de casa.

                   Contou a ela da namorada. Não queria magoar os pais. E pediu ajuda.

                   - Poxa, gosto muito de Dilma. Ela é minha amiga. Mando meu primo apanhá-la de moto agora mesmo – disse e foi até a porteira ordenar.

                   Ao avistar a cachoeira, Alda não conseguiu resistir e mergulhou a cabeça na água, sacudindo seu cabelo curto para se refrescar.

                   - Maravilha, cara.

                   Sentaram-se no lajedo e conversaram, até que Ítalo soltou um grito:

                   - Poxa, Alda, será que eles vão falar alguma coisa?

                   - Nada, Ítalo. São civilizados, afinal. Além do mais, somos amigas. Respeito.

                   Ítalo sentiu-se mais seguro durante a conversa. Com mais vigor, dirigiu-se à queda d'água e ali enfiou a cabeça, como se estivesse recebendo um batismo:

                   - Agradeço, Alda - afirmou, penteando os cabelos com as pontas dos dedos. - E eles sabem da minha posição.

                   - Mas você já conversou numa boa com eles?

                   Ítalo sacudia os cabelos ao sol:

                   - Não dá nem para isso, Alda. 

                   - Pessoas civilizadas.

                   - Para inglês ver.

                   - Vamos conceder um crédito. Ao chegar aqui, parece que ela faz parte da minha comitiva. Não está na moda dizer assim? Na minha comitiva, e vocês ficam à vontade.

                   - Combinado. Então, vou à pescaria com o meu pai, você fica na cachoeira com sua amiga até ela chegar, e depois aparece na lagoa, que eu vou com vocês.

                   Passou um bom tempo em silêncio durante a pescaria, fornecendo piaba para o pai utilizar como isca e capturar os peixes, até que sentiu um puxão na sua vara de pesca:

                   - Dê linha - falou o pai, e fez calma.

                  Ítalo, satisfeito, acatou as ordens do pai, um experiente pescador. Era uma tilápia robusta para uma vara de anzol de piaba. Tanto que a vara se entortou no momento da sua captura.

                   Da margem oposta, conseguiu observar as linhas de pernas bem definidas no short branco de Dilma e o cabelo ondulado de Alda. Perante o silêncio de pescador do pai, antes de guardar o troféu em um saquinho, levantou o peixe como sinal de triunfo.

                   Em boa hora, o garoto Ítalo, mais que depressa, deu por terminada a pescaria e foi juntar-se às visitantes, falando com entusiasmo da captura do peixe graúdo.

*

                   Ao refletir, parecia digno de um postal, com a cachoeira despejando na lagoa repleta de peixes, patos e marrecos, rodeada por folhas de árvores  e o barco que se movia devagar ao movimento do remo.

                   - Dilma, sente aqui, sente.

                            Dilma, elegantemente vestida com um short branco, se acomodava no banco, fazendo com que até os animais viessem saudá-la. Sem mencionar o sol, em busca do cumprimento de paz através de pinceladas finais. Então, eles se beijaram.

                   - Você trouxe o biquíni?

                   De forma astuta, Dilma exibiu por baixo da blusa a roupa de banho superior. Em seguida, agachou-se e, num movimento ágil, pegou o short com a mão, momento em que Ítalo a envolveu num abraço apertado.

                   Sob o brilho de um sol que parecia saudá-los finalmente como num ritual de batismo, os dois corpos jovens se entrelaçaram num abraço molhado e, parte submersa na água, se amaram sem pressa. Quando retornou à realidade, viu Ana saindo de um matagal, carregando uma garrafa de suco de caju. Ítalo sorriu ao sentir imagens que mais tarde recordaria em um poema:

Silêncio de lago

        

Então aquela pescaria com meu pai, aquele peixe que fisguei

com anzol de piaba... que até a vara envergou...

         era só para aquele instante?

 

Então o barco daquele dia na lagoa era só para nós dois;

         também a lagoa com seu silêncio de lago

         e orquestra de pássaros

         num fim de tarde.

        

         E era um instante nosso, local nosso, nesse pedacinho de mundo

nosso

  

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