sexta-feira, 2 de maio de 2025

 Luciana

 

Embora, por dever moral, se aguardasse um ambiente sombrio, nada podia impedir a energia de sucesso que ela, óculos escuros, aparentava esconder. Apesar de usar uma vestimenta apropriada, mostrava-se imponente. O mesmo charme que um dia o envolveu por algumas horas. Tanto que, tempo decorrido, sentiu agora ligeira vibração no beijinho de cumprimento dado no rosto dela.

- Fortezinha, Lu – Ítalo disse baixinho. -  Experiência, completou em pensamento  depois.

Luciana fazia parte de seu círculo familiar, prima afastada.  Lembrava-se do escândalo que ela, moça feita, fez ao encontrar com ele, pré-adolescente. Na ocasião, dia de missa,  arranjado numa calça boca de sino, cinturão, ele estreava um sapato, de duas cores,  um marrom com detalhes em amarelo, de salto alto em cor clara:

- Gente, deixe eu ver aqui, menino!

E acabou encantada com a novidade, pondo Ítalo nas alturas. Este foi apenas um primeiro sinal premonitório para um relacionamento relâmpago, que teriam num outono desses.  Até lá presenciaria meros atos preparatórios de um ataque de leoa. Certamente, uma vez casada, tais ataques seriam mais guiados pela discrição.  No entanto, nunca faltava a satisfação, que era mútua, com justificativas criadas por ele, para não ser rude ou causar ciúmes, que no final ela garantia:

- Relaxe - declarava que o outro estava ciente e não se importava. 

Um dia, de tanto ela insistir para ir ver no quarto dela o livro sobre Roberto Carlos, que era comentado na roda de amigos. Ela dizia que tinha. E ele dizia que não. Até disse carinhosamente:

- Pare com isso, Lu. Você é uma mentirosinha.

- Esse Ítalo é uma besta, pelejei com ele para entrar em casa, para ver o livro, que Hélio estava entretido com o churrasco cá embaixo, e ele nada: perdia a aposta, pois eu mostraria.

E, à saída, surpreendia a todos, exibindo um livro da janela. No entanto, a reputação de falsidade persistiu mesmo após rumores de que ela vinha complicando o marido no banco. O incidente incluiu até uma facilidade oferecida pelo próprio empregado, através da persuasão do cliente. Acompanhou tais conversas com reservas, aceitava as explicações que ela ás vezes dava.

- Ela, para mim, não tem mais prestígio. A gente ainda tolera assim por causa de pessoas como você – ouvia-se a propósito.

Não foi difícil assim o desemboco num divórcio, que amadureceu, sem traumas, gente civilizada, que ela não perdia a postura. E andava com essa, ensaiando ataques de leve, de treino mesmo.

- Ítalo! Ítalo! – batia mão pedindo carona.

                  Por essa ocasião, andava meio atirado, metido a Dom Juan, e ia passando, sem “câmara de segurança” por perto, quando resolveu parar:

- Oi, me dê uma carona, que vou com você pra casa.

Abriu a porta, entrou como uma brisa boa e o frescor de quem saiu do banho:

- Você está bem, né? – sorriu com garantia de sucesso.

Aceitou o beijinho de cumprimento, porque mesmo se não tivesse aceitado, não podia evitar de quase ser engolido:

- Vamos, não leva mais ninguém não.

Comportamento de leoa. Finalmente, viram-se sozinhos. No momento em que estavam mais distantes, na estrada, com menor movimento de carros, percebeu que a mão dela se engraçava com um monte rígido na braguilha da sua calça. Ele freou por um instante, em seguida abriu o zíper e se arrumou. Morrendo de desejo, ela, nem esperou um segundo, abaixou a cabeça e abocanhou como uma fera, num servicinho carinhoso de admiração e tara, só comparável ao entusiasmo de encontrar Ítalo com seu sapato de salto alto marrom, com detalhes em amarelo. E o carro seguia tranquilamente pela estrada.


quarta-feira, 23 de abril de 2025

 

Val

                       

                        Não se lembrava bem se chegou a paquerar Val ou não, foi um rio que passou em sua vida apenas. Ela era uma colega de disciplina,  garota de cabelos arranjados, discretamente, à moda afro. De traços finos.  Leveza no trato. Esse o detalhe. Conheceram-se num trabalho de grupo.

                   Eles se acomodavam na cantina para realizar o trabalho, enquanto Ítalo observava o jeito delicado de Val e a atenção que ela recebia. Referiam-se a uma festa na faculdade vizinha de Administração naquela noite. Andava muito com Alexandre, que corria adiante para reservar a carteira de dupla:

                   - É nossa, Val – gritava sentando-se, as mãos ocupadas com dois acarajés.

                   - Ué,  pensei que um fosse pra Val –estranhou Ítalo.

                   Ele acionou as duas tochas dos olhos e se explicou:

                   - Não, meu filho. Dá a idéia, né? Mas são pra mim mesmo. Eu como os dois, nesse horário. Eu adoro – disse recolhendo suas tochas de fogo.

                   - Por volta das oito da noite. Ítalo,  você, que tem moto, passa pra pegar Val, que a gente se encontra no portão da escola, tá ok? – explicação de Alexandre.

                   - Sua palavra é uma boa ordem, Lixa – disse Ítalo dando tapinha no ombro do mancebo.

         Val, de sorriso em esboço, cuidava das anotações no caderno:  

         - Vamos ver aqui os tópicos que couberam a cada um.

         Ítalo pediu a Val que anotasse o tópico no seu caderno.

         - Não quer que ela faça também não? -  Alexandre perguntou. - E o pior é que pra você ela faz mesmo, né, Val? Ui, ficou com o rosto vermelho, cara.

         Com certeza percebeu a vermelhidão. Ítalo antevia uma delícia de namoro com Val, delicadíssima em suas atitudes. Ponto para Alexandre. Ele captava o lance que estava havendo entre eles.  Uma relação distinta da deles, que se assemelhava à de irmãos, que só andavam encabados, não fosse a diferença de cor da pele, ele branco e ela mais escura. Era apreciável vê-los assim.  Ítalo disse isso a eles.

         - Val, somos irmãos desde o colégio, certo? E fomos aprovados no mesmo exame. Assim, Ítalo, você pode contar com o suporte da família.

         Val precisava ir à biblioteca consultar um livro. Val caminhava pela área de recreação rumo às escadas quando recebeu o abraço de Ítalo:

         - Pego uma carona com você, querida – gritou Ítalo.

         De jeito, acidentalmente, estava atraído pelo perfume que vinha do penteado da garota, quando não se conteve e a puxou para um beijo, como que para selar a paquera,

         Mas, “daí a pouco”, pensou com seus botões,  “nessa esteira de raciocínio, Lixa estaria oferecendo a ele a mão da colega em casamento”. E isso foi como uma sacudida, lembrou-se de que ele já era noivo e o noivado, numa expectativa de direito, obedecia a rituais que ele somente  agora tomava conhecimento. Val era por demais gente fina. E Italo não podia agir como um imaturo.

                  Por isso, não sabe dizer de Val, senão da doce recordação de momento, sem, inclusive, precisar estar presente na festinha ali no campus.

 

 

 

sexta-feira, 18 de abril de 2025

 Darlene

 

O que soasse de algo diferente entrava no âmbito da sua simpatia e fazia reacender a luzinha de interesse adolescente. Por isso que daquele grupinho de meninas que se arrumou lá na frente, só uma lhe chamava a atenção.

- Mudou de lugar agora, é? Quer ver também as garotas? – indagava Wilson.

E lhe apontavam uma e outra da turminha. Que não guardava o mínimo de encanto.

- Já lhe mostrei todas e você nada, cara. Olhe aquela branquinha de camiseta amarela! – insistia Wilson.

Era, sem sombra de duvida, do tipo “garota do momento” mas...

- Então, qual é ... deixe-me ver... das outras duas?

Poxa, nem para incluí-la se eram quatro o grupo! – pensou Ítalo. Com muita peleja se tocaria o colega:

- Fora daí, só lhe restava então a gordinha Darlene.

- Ela se chama Darlene. Que nome bonito, de artista! – Ítalo disse com entusiasno.

De nada adiantava argumento contrário. Ficava mais fascinante até, achava. E numa turma de alunos de cursinho não faltava quem. A essa galera parecia que, ao descobrir essa preferência sua, reacendia neles essa campanha de torcida contra. 

- Você tem que ficar com uma daquelas. Me diga o que você viu nessa gordinha Darlene, cara? – era Wilson.

- Vi alguém de minha simpatia; as outras, as bonitinhas, não.

Aproveitando que Wilson estava com cara de “Ah, é, é?”, Ítalo emendava:

- Interessante que quando eu olho para ela, as bonitinhas, próximas, se acotovelam disputando, e ela vai ficando para trás com meu olhar em busca.

- E aí, como é que ela sabe que é dirigido a ela, cara?

- No começo, ela, simplesinha, recuava e dava vez para as colegas. Educada, não é?

- É, mas nesse caso, sei não... Como se reconhecesse seu lugar de fora da jogada?

- Justamente. Mas agora, ela já entende que meu olhar é dirigido a ela mesmo. Outro dia que joguei meu charme eu vi uma delas dizer “ué, é pra você, Darlene.”

- Então você levantou a moral da garota?

.- Com certeza. Diante das perguntas das outras, “sou eu?”, “sou eu?”, e eu sacudindo negativamente a cabeça, ela, Darlene entendeu que eu queria paquera com ela, quando eu sorrir ao sorriso dela. Vamos até marcar um cineminha já, já.


segunda-feira, 14 de abril de 2025

 

Tâmara

 

Ao menor sinal de desconforto, o gesto dela de dizer "ah, um instante" e se abaixar era visto como o momento crucial de desejo e conquista. Ela enfiava a mão pelos cobertores, passando entre as pernas, e, decidida, retirava a calcinha. Quando se anunciou que estava sem ela, ele se revoltou e ordenou que ela se vestisse primeiro. Retirá-la somente depois. Não desejava perder o momento. Durante os períodos de medo, tornou-se um símbolo de sucesso entre eles.  Um segredo extremamente pessoal, que não era de interesse de ninguém. E isso perduraria por toda a sua existência, quando era encantador ouvir: "venha!" Então ele entrava e se aprofundava numa tranqüilidade sem fim, de se ferrar no sono e acordar com raios de sol mal perfurando o telhado.

Ítalo descansou o copo no balcão porque já tinha tomado todas. Achava.

- Mais uma, Ítalo? – falou o garçom.

Acenou negativamente com a mão, mas acabou aceitando quando o rapaz surgiu e desembalou a lata.  Já fazia algum tempo que estava atualizando sua fita de memória. E sempre se enganchava na criação desse instante de sua iniciação. Recordou até uma visita à casa dos bisavós, durante um passeio de bicicleta que realizou com a prima Tâmara e irmãos. Na hora de se recolherem para uma ciesta, os meninos ficaram brincando no quintal. E ele num quarto de hóspedes, que guardava umas malas de couro cobertas por coxinilhos, esperando dela o chamado em voz sussurrada; toco de cigarro atirado pela janela do casarão:

“Venha!”

Durante algum tempo, ainda relacionava o odor da fumaça de cigarro com esse ambiente íntimo, pura intimidade com cheiro de sexo. Daí a sensação de trazer isso como reserva pessoal, talvez um pijama. Além dessa descoberta, a revelação de um mundo inédito, cujo anúncio seria um segredo tácito do Estado. Portanto, na sua mente de doze anos, em silêncio total, precisava caber toda essa maravilha. A professora apresentava seus ensinamentos na didática, enquanto ele apenas a observava. Esse seria o segredo que só os adultos possuíam! “É isso, cara!” pensava na época.

                     Ele percorreria o mundo com essa imagem de uma fita presa.  Não contava mais com a parceria da prima, apesar de insistências suas, que estava mais taludo, até que foi dado um basta final, com o casamento de Tâmara.  Foi desafiador suportar isso até os vinte anos, quando, finalmente, após várias tentativas, as comportas do desejo se abriram. E desembocaram no oceano. Então, depois de superar diversas fases de quase sucesso nessas tentativas, ele caiu no mundo.

Essa análise de fatos não tinha como objetivo outro senão a nostalgia das oportunidades da vida.  "A vida vem em ondas como o mar", tentou entoar suavemente.  "Ela nos proporciona a oportunidade entre uma e outra lambida na areia" - refletiu em sua tranquilidade provocada pelo abuso do álcool.

T

terça-feira, 11 de março de 2025

Ana

 

                     Ítalo tomou o café na hora em que a garota apareceu na sala com a bandeja. Jeitosa, a filha do caseiro, foi o que lhe acudiu de momento. Mas estava meio borocoxô. Arrastado para a fazenda, quase que forçado, a família no cerco contra seu relacionamento com Dilma, era o estado em que podia encontrar o menino. Que não era mais menino, mas um acadêmico, graduando em Letras Vernáculas.

                   Ítalo estava agora necessitando de um paracetamol. Estar sob sua influência era uma experiência incrível. Ele experimentou diversos momentos de catarze natural, como ocorreu por ocasião de uma parada para um lanche num posto de combustível à beira da estrada. Era um contentamento obtido por aqueles que se satisfazem com pouco. Passou-lhe à mente lembrança de um furto que praticara quando criança, quando teve que saltar o muro e cair num quintal do vizinho para pegar no pé uma manguita madura. Um momento de ponderação entre o medo, o furto e o proibido. Um olhar para os lados, depois com os braços estendidos em comemoração, como símbolo de felicidade em sua expressão mais íntima. Era tão dele que chegava a se recolher. Um, para não quebrar o encanto; dois, sem estardalhaço, para não perturbar quem ainda não galgou os degraus.

                   Tudo isso vinha a propósito de se encontrar numa inquietação, sem dor localizada. Em termos de localização, era uma dor interna. Não seria o sentimento de ausência?

                            - Pegue a placa da porteira, que está desbotada, e verifique se consegue pintar o nome da fazenda - falou o pai durante o café da manhã, como se fosse uma ordem de trabalho, equivocadamente associando a formação do filho à carreira de um letrista pintor. E ele tinha que aceitar como uma amostra do que estava por vir para preservar a estabilidade.

                  - Seu pai queria que você fizesse pra medicina, mas não deu, né, cara? – era a filha da empregada tomando boca, como dizia a mãe.

                   Percorria o jardim em volta da casa, enquanto escutava o ruído de galinhas garnisés e alguns patos que vinham da lagoa próxima. Pretendia observar a paisagem enquanto cumpria sua sentença. Quem disse que ele deveria apreciar as letras? Portanto, pegue, calce as sandálias de veludo e reconstrua a placa da propriedade rural.

                   - Ana, na próxima vez que for à cidade, traga-me folhas de lixa para lixar essa placa de zinco, um pincel e algumas latas de tinta preta, branca e vermelha, combinado?

                            Depois de resolver a questão da placa, que aguardaria sob o pé de juazeiro (Ana já havia varrido o local), era necessário resolver a questão da horta. Ítalo discutiu a ideia com a família pela manhã. Porém, horas mais tarde, apareceu seu Gerônimo, carregando uma enxada e um enxadão, acompanhado de dois ajudantes:

                   - Sua mãe mandou o senhor marcar o local.

                   Ele havia amadurecido o desejo de cultivar uma horta doméstica ao invés de adquirir uma propriedade rural, que demandaria a contratação de trabalhadores. No entanto, a mãe, talvez com a intenção de satisfazer o filho e conduzi-lo aos negócios agrícolas, não aceitava essa perspectiva. 

                   O dia prosseguia fresco, depois do café gentilmente servido por Ana, toda elegante, quando Ítalo foi pego de surpresa pela chegada de Alda, que dissiparia o clima tenso:

                   - Oi, Ítalo, que saudade! – exclamou a moça com quem já havia trocado alguns abraços escondidos.

                   Alda, disfarçada de entregar correspondências ao seu chefe, aparecia de shorts com uma companheira.

                   - Vai mostrar pra ela a cachoeira, Ítalo – articulava a mãe.

                            Para compensar essa falta, para felicidade da mãe, Ítalo envolveu Alda num abraço de antiga paixão e caminharam entre os galináceos do quintal:

                  - Esse daqui, todo imponente, é meu amigo peru, Alda; aquele de uma tecla “tô-fraco tô-fraco”, barulhento, é o meu amigo cocá, a tal galinha de Angola... Esteja em casa, Alda, e vamos seguindo que eu quero lhe falar.

                   - Também nasci na zona rural, Ítalo,  os bichos são de casa.

                   Contou a ela da namorada. Não queria magoar os pais. E pediu ajuda.

                   - Poxa, gosto muito de Dilma. Ela é minha amiga. Mando meu primo apanhá-la de moto agora mesmo – disse e foi até a porteira ordenar.

                   Ao avistar a cachoeira, Alda não conseguiu resistir e mergulhou a cabeça na água, sacudindo seu cabelo curto para se refrescar.

                   - Maravilha, cara.

                   Sentaram-se no lajedo e conversaram, até que Ítalo soltou um grito:

                   - Poxa, Alda, será que eles vão falar alguma coisa?

                   - Nada, Ítalo. São civilizados, afinal. Além do mais, somos amigas. Respeito.

                   Ítalo sentiu-se mais seguro durante a conversa. Com mais vigor, dirigiu-se à queda d'água e ali enfiou a cabeça, como se estivesse recebendo um batismo:

                   - Agradeço, Alda - afirmou, penteando os cabelos com as pontas dos dedos. - E eles sabem da minha posição.

                   - Mas você já conversou numa boa com eles?

                   Ítalo sacudia os cabelos ao sol:

                   - Não dá nem para isso, Alda. 

                   - Pessoas civilizadas.

                   - Para inglês ver.

                   - Vamos conceder um crédito. Ao chegar aqui, parece que ela faz parte da minha comitiva. Não está na moda dizer assim? Na minha comitiva, e vocês ficam à vontade.

                   - Combinado. Então, vou à pescaria com o meu pai, você fica na cachoeira com sua amiga até ela chegar, e depois aparece na lagoa, que eu vou com vocês.

                   Passou um bom tempo em silêncio durante a pescaria, fornecendo piaba para o pai utilizar como isca e capturar os peixes, até que sentiu um puxão na sua vara de pesca:

                   - Dê linha - falou o pai, e fez calma.

                  Ítalo, satisfeito, acatou as ordens do pai, um experiente pescador. Era uma tilápia robusta para uma vara de anzol de piaba. Tanto que a vara se entortou no momento da sua captura.

                   Da margem oposta, conseguiu observar as linhas de pernas bem definidas no short branco de Dilma e o cabelo ondulado de Alda. Perante o silêncio de pescador do pai, antes de guardar o troféu em um saquinho, levantou o peixe como sinal de triunfo.

                   Em boa hora, o garoto Ítalo, mais que depressa, deu por terminada a pescaria e foi juntar-se às visitantes, falando com entusiasmo da captura do peixe graúdo.

*

                   Ao refletir, parecia digno de um postal, com a cachoeira despejando na lagoa repleta de peixes, patos e marrecos, rodeada por folhas de árvores  e o barco que se movia devagar ao movimento do remo.

                   - Dilma, sente aqui, sente.

                            Dilma, elegantemente vestida com um short branco, se acomodava no banco, fazendo com que até os animais viessem saudá-la. Sem mencionar o sol, em busca do cumprimento de paz através de pinceladas finais. Então, eles se beijaram.

                   - Você trouxe o biquíni?

                   De forma astuta, Dilma exibiu por baixo da blusa a roupa de banho superior. Em seguida, agachou-se e, num movimento ágil, pegou o short com a mão, momento em que Ítalo a envolveu num abraço apertado.

                   Sob o brilho de um sol que parecia saudá-los finalmente como num ritual de batismo, os dois corpos jovens se entrelaçaram num abraço molhado e, parte submersa na água, se amaram sem pressa. Quando retornou à realidade, viu Ana saindo de um matagal, carregando uma garrafa de suco de caju. Ítalo sorriu ao sentir imagens que mais tarde recordaria em um poema:

Silêncio de lago

        

Então aquela pescaria com meu pai, aquele peixe que fisguei

com anzol de piaba... que até a vara envergou...

         era só para aquele instante?

 

Então o barco daquele dia na lagoa era só para nós dois;

         também a lagoa com seu silêncio de lago

         e orquestra de pássaros

         num fim de tarde.

        

         E era um instante nosso, local nosso, nesse pedacinho de mundo

nosso

  

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

 

Zenaide

 

                        Sob a perspectiva de uma consciência pura, não se fazia necessário agir movido por esses instintos animalescos, que só seriam justificáveis sob uma perspectiva machista. Ela não era exatamente uma boazuda, mas sim alguém que não conseguia resistir à gula leolina. Apenas no frescor da idade, recém-chegada ao mercado da arena machista. Em contrapartida, Ítalo apoiava a educação humanista, que lutava incessantemente dentro dele.

                   Daí que nesse impasse do bem e do “mal”, vivia-se enquadrado dentro de um modelo de dias contados:

                   - O homem é um produto do meio, você há de convir -  lembrava um velho fazendeiro, de influência local.

                  Ítalo, de passagem, assuntava na prosa e se mostrava presente. Não comentava com ninguém esse lance de amassos e agarramentos escondidos. Seguia uma normalidade para o entendimento geral, mas não para ele, de outra formação.

                   - Devo ser um modelo de bondade? Espere lá! – exclamou um dia em resposta à acusação de comportamento negligente, quando apenas buscava se exercitar enquanto estava no local, algo que havia deixado de lado em prol da moral e do cavalheirismo.

                   - Mas olhe sua posição, cara!

                   - Hierarquia agora?

                   - É considerado abuso, assédio – disse piscando um olho o colega com quem teve que se abrir depois.

                    - Mas o meu machismo prevaleceu e eu permiti.

                   Dera de ombros, como que fosse mais um Pilatos, ao bem do dom juanismo.

                   -  É, e assim caminha a humanidade – conclui o colega,

                 - Não consegui suportar. Em um impulso de cavalo que se levanta, livre... e agora, meu filho... Quando cheguei em casa, ela estava perfumada, como uma vestal, na sua pureza branca, não consegui resistir. O vulcão que tentamos conter se intensifica. Portanto, uns abraços. Pressionada contra a parede, os peitos saltam para fora da blusa e as mãos estão tontas e confusas com o que apalpar, os lábios estão ansiosos para deslizar, numa reviravolta geral e completa, antes da possibilidade de descoberta.

                  - É aquele negócio: o cara olha pros lados não aparece ninguém, então ele vai lá no paraíso e bulina...

                   - Mas fica só na bulinação, que não tira pedaço de ninguém e, noutro plano, ajuda no seu crescimento natural. É isso.

                   - Mas ficou nisso mesmo, cara?

                    Claro que ficou por aí, sem traumas.

 

 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

 

Dilma

 

            - Há palavras tão bonitas que, para gostar delas, a gente nem precisava saber de seus respectivos significados – Ítalo iniciava a conversa.

         Sem interferência, ele prosseguia:

         - Palavras como clímax e libido, por exemplo. Que elegância de corpo e beleza de musicalidade elas possuem! – prosseguia com sua maestria.

         E acabava arrematando:

         - Quem assim, ao pronunciar tais palavras, não sentiu a descarga, a chegada ao topo, ao vencer a escadaria da libertação?

         Foi com essa reflexão que Ítalo atraiu a jovem Dilma na roda de amigos e a arrastou para um bate papo de namoro, que abalaria toda a cidade.

         - Um escândalo! – falava Novaes.

         - Uma revolução, isto sim – dizia Rock, contemporâneo e admirador, na roda de amigos no bar, relembrando o dia desse encontro dos jovens.

         E, com gestos, finalizava:

         - Ela, uma das garotas mais atraentes da redondeza; ele, um cara atraente, inteligente e de família rica, é natural que sejam observados, seja em seus gestos ou em suas roupas.

         - Lembro-me desse dia como se fosse hoje. Ele estava aqui, na mesa, no início das férias.

         - Soube que agora estão em conflito. Aquele amor todo, na praça, no clube, nas festas e onde quer que houvesse movimento, agora puf! -  falou Novaes, o proprietário do barzinho.

         - É nada! – replicou Rock, especialista em Ítalo.

         - Certeza! Quer apostar?

         - Briga de namorado, cara!

         Enquanto se especulava sobre um possível romance entre Ítalo e Dilma, o garoto chegou e logo agarrou um taco. Iria jogar sinuca para refletir sobre o tema. Uma forma de deixar de lado os problemas menores. E exibia sua jovialidade naquele final de verão de 1981. Tantas ocasiões para marcar presença, mostrar-se, pelo menos.

         O novo veículo estava à sua espera, porém, por orientação materna, ele não deveria exagerar. Em outras palavras, tinha que desempenhar o papel de filhote de papai, entendimento que ele rejeitava, especialmente agora com a proibição dele de namorar Dilma:

         - É moça para casamento, Ítalo. Não serve para você – aconselhava a tia já à porta do bar.

         - Tia, eles começaram a implicar - soluçava o garoto. - E o serviço de espionagem que eles estabeleceram está funcionando bem, não é mesmo? - questionou com ironia.

         Observou o carro na sombra, limpo e brilhante, como um desses garotos inocentes. Então, sacudiu a cabeça de forma negativa e expressou sua indignação:

         - Não quero mais!

         Numa arrancada, ele partiu, apesar dos protestos da tia ("espera, menino, espera!"), e apanhou o veículo debaixo de uma árvore.   Deixou o carro na garagem, perto do bar, e caminhou até ser detido pela tia, de quem se distanciou antes de voltar à mesa de sinuca.

         - Bola 7! – exclamou na manhã quente de verão, como que despertando para a vida, espantando o barulho que já se formava atrás dele.

         -  É, cara, mas perder esse presente por causa de namoro é fogo!

         - Você acha, cara, que Ítalo vai desistir da namorada por um carro? 

         - Estou com Rock nessa aposta e boto mais três cervejas, pra beber aqui bico seco.

         - Está feito então.

                   No dia seguinte, ítalo se levantou mais tarde. Ele estava ameaçado por uma ressaca moral. Se acomodou à beira da cama e refletiu:

                   - Deixe-me examinar o que fiz de errado ontem: uau, voltei para Dilma! Recordou-se de como ela estava bonita com o cabelo curto e esboçou um sorriso para aquilo tudo.

        

 

 

 

 


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

 

Irmã espremida

 

            Ítalo, em suas “escarafunchações” de pré-adolescente, descobria agora que Zé Calango tinha uma irmã espremida. Tinha pena dela. Viver no meio daquela homaiada!

                        - Não é fácil não – dizia Ítalo, após ele próprio falar da sua estupefação.

            - É aquela menina que vive lá para dentro, Ítalo? lembrava Rock . - Eu já reparei mesmo.

            - Que eu saiba, ela é a mulher da casa. Zé é órfão. Ela, tão mocinha, é quem ajuda o velho a cuidar da casa.

            - Mas o que você acha mesmo estranho?

            - Isso: só ela de mulher naquele ermo. Nenhuma amiguinha, pra contar suas histórias, rir, brincar de cantiga de roda, chorar... essas coisas de menina...

            - Na escola tem, ué?

            - E ela tem os olhos verdes que nem Zé.

            A garotinha vivia espremida entre os dois irmãos pequenos de Zé Calango e Luiz. Que escola? Uma horinha da manhã num prédio erguido na ponta da rua, longe do campo, que nem dava para esquentar lugar quanto mais...

            - Pergunte você, que Zé Calango é cismado.

            - Com que?

            - Esse negócio de família... sei não.

            - Comigo ele se abre, é amigo, por que não?

            E abria mesmo, Zé era piadista, contador de histórias e até bonzinho de bola. Mas daí a contar intimidades assim...

            - Sei não... – completava seu raciocínio.

            - Você já notou que a gente chega lá pra beber água, no intervalo do jogo, e ela fica de espreita na porta da cozinha?

            - É porque ela é sozinha e o pai está servindo a água pra meninada, que vem do campo de jogo de bola.

            - Sei não – era o que Ítalo sabia dizer.

            Na única residência próxima ao campo, em meio a uma seca periódica, o velho pai de Zé Calango precisava retirar água da cisterna para matar a sede dos jovens atletas. Também não era culpa deles residirem naquele local isolado, isolado. Ítalo sentia-se perturbado pela vida que a jovem levava mas nada podia fazer para mudá-la.  Nem discutir o assunto com o irmão, tão comunicativo com a turma.

            - É,  Rock tem razão, nesse negócio de família... – pensou Ítalo.   

            - Eu já sei porque você pensa nela, cara. Se Zé sonhar que você demonstra interesse na irmã dele...

            Foi preciso dar um esporro em Rock para que o diálogo terminasse ali mesmo. Que olhos verdes nada, ele observava aqueles olhos melancólicos, sem alegria, apesar do brilho juvenil, sempre que ia lá para beber água. Sem a presença paterna, ninguém conseguia retirar água da cacimba. Portanto, no dia em que deu a louca e bateu à porta, ela não apareceu. Ao ouvir o "não" dos dois irmãos mais novos, na porteira da chacarazinha, ela se deixou levar por um movimento interior.  Foi a última vez que observou a garota “espremida”. Em seguida, veio a triste notícia do falecimento daquela "irmãzinha de Zé Calango".