domingo, 2 de novembro de 2025


                                   

 Moça preta

A Daniel Pereira Carvalho

Um grupo de jovens funcionários do comércio local se reunia em torno de uma mesa de chope em um dos restaurantes da Rua Carlos Gomes, como se estivesse celebrando a véspera de um feriado. Ítalo, um vestibulando buscando se refrescar antes das apostilas que teria que encarar, tomava sua cervejinha enquanto observava aquela animação.

Comemoravam com uma garçonete de cabelos afro, que posteriormente retornou sem avental, indicando o fim de seu trabalho, para se integrar ao grupo de forma amistosa.  Recebia abraços de uns e de outros, com beijinhos, quando alguém iniciou, cantando:

- Parabéns pra você – e os demais acompanharam em cantoria.

Até que encontraram uma maneira de acomodar a aniversariante na mesa em frente à de Ítalo. Ele se comportava como um príncipe diante dela, olhando-a com a intenção de um paquera. Pelo entusiasmo da garota e da ora aflorada carência dele, até que valia a pena investir no passe. Não se importou se estava deixando escapar algum charme e continuou com os sinais nem tão discretos assim. Além disso, ela ajudava a encaixar a situação nos trejeitos que ensaiava à mesa. Era uma jovem, afinal. Anteriormente, ela era uma integrante da equipe da empresa, mas agora, sem o avental e mais à vontade, se apresentava como uma usuária comum dos serviços, chegando como uma estrela.

 E ele, distante da nobreza que buscava exibir, carregava alguém que até recolhia bitucas de cigarro para satisfazer seu vício. Daí a busca por um momento de enternecimento. Com o desenrolar dos acontecimentos, tudo caminhava para esse clima. Era um quadro alegre da garota e sua turma de amigos. O verão era anunciado em celebrações repletas de sons e cores. As imagens eram vibrantes e retratavam a pele escura que recebeu o sol de 1980, simbolizando o início de uma nova década. Com a altivez dos seus vinte anos, Ítalo olhava para a garota, que se surpreendia com seu pedido de aconchego. Ele era branco, mas precisava também de um bronzeado, tinha cabelos pretos com estilo "mato-tomou-conta" e uma barba igualmente selvagem de iniciante.

A aproximação foi feita por uma terceira pessoa, na parada, que cuidou desses detalhes. De fugir do barulho, dando uma escapada do círculo de amigos para um papo num lugar tranquilo. Deu-se que num passe de mágica, tal a fúria do fascínio, que estava Ítalo mordendo Glória com suas cuidadosas trancinhas.                         

- Pensei que não viesse mais.

- Deu que fazer pra me despedir de cada um deles.  De cada uma vinha uma recomendação.

- O que, por exemplo?     

- Uns em tom de brincadeira, que fosse devagar, que aproveitasse o verão, que à meia noite acaba, essas coisas... – disse expondo em sorriso os dentes alvinhos.

- À meia noite se refere a história do conto de fadas?

- Exatamente – respondeu a princesa.

- Que maldade com você!

- Nada, você deve ser meu presente de aniversário, é isso.

- O príncipe.

- Claro.

- Então deixe eu ir aqui nuns ajustes – disse fingindo consertar o colarinho da camisa.

Isso valia como aquecimento, depois com certeza viria a apresentação: o nome e o que fazia, essas coisas todas. Quando foi ventilado tal orientação, logo Ítalo descobriu uma conclusão de fundo crítico e perguntou:

- Isso é preocupação burguesa, você não acha?

- É. Não interessa a ninguém saber que meu nome é Gloria e que trabalho aqui nesse período – disse, contente, balançando as trancinhas.

- Muito menos ao príncipe – disse o estudante.

Ele recebeu dela um beijo apaixonado, que fez a turma de amigos vibrar em solidariedade. Então, tiveram a ideia de fingir ser um casal de turistas e foram passear pelos arredores. Iriam gastar todo dinheiro velho no namoro garantido, no que desse, era um pensamento nublado que ítalo carregava, mas que vinha se assentando com o sol forte.

- Acarajés, para começar – pediu o príncipe.

- Peça só um pra nós dois – corrigiu Glória.

Enquanto a baiana cortava o acarajé para colocar o vatapá, a princesa se tornava mais próxima. Ítalo chamou um táxi:

- Vamos dar um giro pela orla – disse aplicando um beijo que despertaria num movimento as argolas que ela usava.

Sentiam no rosto, como um alívio, o vento que anunciava o verão. O casal, em passos descompromissados,  deliciava-se com o acarajé, alternando as mordidas.

- Sabe que eu acho legal estar com você assim, com esse penteado?

- Minha irmã que faz pra mim.

Glória teceu com orgulho comentário sobre os dotes da irmã.

- Dizem que ela é uma prendada. Eu que sou a perdição.

- Você apronta muito?

- Um pouco. Mas agora que arranjaram esse emprego aqui... melhorou ou piorou? Não sei.

Quando Ítalo, descalço, abraçou Glória na areia do Porto da Barra, a conversa mudou para os agarramentos. E então falavam a linguagem dos jovens, levando em consideração as nuances climáticas e culturais. Já se aproximava do final da tarde quando a música de Caetano Veloso, com toda a beleza da negritude, ecoava dentro do estudante Ítalo:

 

                          Não me amarra dinheiro não

                          Mas formosura

                          Dinheiro não

                          (...)

                          Quando essa preta começa a tratar do cabelo

                          É de se olhar toda a trama da trança, trança do cabelo

                          Conchas do mar, ela manda buscar pra botar no cabelo

Toda minúcia, toda delícia

 

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