Moça
preta
A
Daniel Pereira Carvalho
Um
grupo de jovens funcionários do comércio local se reunia em torno de uma mesa
de chope em um dos restaurantes da Rua Carlos Gomes, como se estivesse celebrando
a véspera de um feriado. Ítalo, um vestibulando buscando se refrescar antes das
apostilas que teria que encarar, tomava sua cervejinha enquanto observava
aquela animação.
Comemoravam
com uma garçonete de cabelos afro, que posteriormente retornou sem avental,
indicando o fim de seu trabalho, para se integrar ao grupo de forma amistosa. Recebia abraços de uns e de outros, com
beijinhos, quando alguém iniciou, cantando:
-
Parabéns pra você – e os demais acompanharam em cantoria.
Até
que encontraram uma maneira de acomodar a aniversariante na mesa em frente à de
Ítalo. Ele se comportava como um príncipe diante dela, olhando-a com a intenção
de um paquera. Pelo entusiasmo da garota e da ora aflorada carência dele, até
que valia a pena investir no passe. Não se importou se estava deixando escapar
algum charme e continuou com os sinais nem tão discretos assim. Além disso, ela
ajudava a encaixar a situação nos trejeitos que ensaiava à mesa. Era uma jovem,
afinal. Anteriormente, ela era uma integrante da equipe da empresa, mas agora,
sem o avental e mais à vontade, se apresentava como uma usuária comum dos
serviços, chegando como uma estrela.
E
ele, distante da nobreza que buscava exibir, carregava alguém que até recolhia
bitucas de cigarro para satisfazer seu vício. Daí a busca por um momento de
enternecimento. Com o desenrolar dos acontecimentos, tudo caminhava para esse
clima. Era um quadro alegre da garota e sua turma de amigos. O verão era
anunciado em celebrações repletas de sons e cores. As
imagens eram vibrantes e retratavam a pele escura que recebeu o sol de 1980,
simbolizando o início de uma nova década. Com a altivez dos seus vinte anos, Ítalo
olhava para a garota, que se surpreendia com seu pedido de aconchego. Ele era
branco, mas precisava também de um bronzeado, tinha cabelos pretos com estilo
"mato-tomou-conta" e uma barba igualmente selvagem de iniciante.
A aproximação foi feita por uma terceira
pessoa, na parada, que cuidou desses detalhes. De fugir do barulho, dando uma
escapada do círculo de amigos para um papo num lugar tranquilo. Deu-se que num
passe de mágica, tal a fúria do fascínio, que estava Ítalo mordendo Glória com
suas cuidadosas trancinhas.
- Pensei que não viesse mais.
- Deu que fazer pra me despedir de cada um
deles. De cada uma vinha uma
recomendação.
- O que, por exemplo?
- Uns em tom de brincadeira, que
fosse devagar, que aproveitasse o verão, que à meia noite acaba, essas
coisas... – disse expondo em sorriso os dentes alvinhos.
- À meia noite se refere a história
do conto de fadas?
- Exatamente – respondeu a
princesa.
- Que maldade com você!
- Nada, você deve ser meu presente
de aniversário, é isso.
- O príncipe.
- Claro.
- Então deixe eu ir aqui nuns
ajustes – disse fingindo consertar o colarinho da camisa.
Isso valia como aquecimento, depois
com certeza viria a apresentação: o nome e o que fazia, essas coisas todas.
Quando foi ventilado tal orientação, logo Ítalo descobriu uma conclusão de
fundo crítico e perguntou:
- Isso é preocupação burguesa, você
não acha?
- É. Não interessa a ninguém saber
que meu nome é Gloria e que trabalho aqui nesse período – disse, contente,
balançando as trancinhas.
- Muito menos ao príncipe – disse o
estudante.
Ele recebeu dela um beijo
apaixonado, que fez a turma de amigos vibrar em solidariedade. Então, tiveram a
ideia de fingir ser um casal de turistas e foram passear pelos arredores. Iriam
gastar todo dinheiro velho no namoro garantido, no que desse, era um pensamento
nublado que ítalo carregava, mas que vinha se assentando com o sol forte.
- Acarajés, para começar – pediu o
príncipe.
- Peça só um pra nós dois –
corrigiu Glória.
Enquanto a baiana cortava o acarajé
para colocar o vatapá, a princesa se tornava mais próxima. Ítalo chamou um
táxi:
- Vamos dar um giro pela orla –
disse aplicando um beijo que despertaria num movimento as argolas que ela
usava.
Sentiam no rosto, como um alívio, o
vento que anunciava o verão. O casal, em passos descompromissados, deliciava-se com o acarajé, alternando as
mordidas.
- Sabe que eu acho legal estar com
você assim, com esse penteado?
- Minha irmã que faz pra mim.
Glória teceu com orgulho comentário
sobre os dotes da irmã.
- Dizem que ela é uma prendada. Eu
que sou a perdição.
- Você apronta muito?
- Um pouco. Mas agora que
arranjaram esse emprego aqui... melhorou ou piorou? Não sei.
Quando Ítalo, descalço, abraçou
Glória na areia do Porto da Barra, a conversa mudou para os agarramentos. E
então falavam a linguagem dos jovens, levando em consideração as nuances
climáticas e culturais. Já se aproximava do final da tarde quando a música de
Caetano Veloso, com toda a beleza da negritude, ecoava dentro do estudante
Ítalo:
Não
me amarra dinheiro não
Mas
formosura
Dinheiro
não
(...)
Quando
essa preta começa a tratar do cabelo
É
de se olhar toda a trama da trança, trança do cabelo
Conchas
do mar, ela manda buscar pra botar no cabelo
Toda
minúcia, toda delícia