segunda-feira, 30 de junho de 2025

 

Coração repartido

 

                  A cancela de ferro da casa dos avós seguia escoando o tempo. Notícias sobre Talita chegavam. Selmas era flagrada lamentando-se pelos cantos:

                   - O que foi, Selmas? Por que chora assim do nada?

                   Nada respondia. Era necessário compreender de forma intrínseca. Era o que se obtinha do processo. E ele estava mergulhando ali. Mas também era necessário emergir, e o fazia renovando:

                   - Se você quer ir até lá, pois que vá, eu fico olhando os meninos.

         Nesse compromisso, recordava-se de ter honrado a palavra e cuidar  dos pequenos, tendo cometido apenas uma falha:

                   - Não deixe que ele veja você colocar o mussilon na mamadeira, caso contrário, ele não vai aceitar.

                  Pois essa foi sua única falha: o garoto ter se recusado a aceitar a mamadeira. Pelo menos Ítalo se tornou mais presente como pai. De até tomarem banho juntos e dormirem lado a lado. Por seu turno, além de seus filhos, Selma também se preocupava com seus irmãos. Sentia assim o dever de acompanhar Talita no procedimento cirúrgico ao qual ela se submeteria. Sentimento que ele, engolindo os soluços, compartilhava.

                   Mais de um mês após a cirurgia, Selmas deixou a enferma e, relutante, voltou para cuidar de sua casa.  No entanto, as chamadas interurbanas continuaram quase dobrando e se estendendo até a madrugada.   Falava diretamente com o médico. Quando se pensava que tudo estava bem, Selma era encontrada chorando. Não se conformava:

                   - Trinta e seis anos, duas filhas...

                  A idéia de ir a S. Paulo pegar Talita de volta para a casa dos seus pais foi uma atitude corajosa que Selmas pôde tomar:

                   - Vamos trazer Talita para casa .

                   Ítalo ainda recordava Talita, impossibilitada de se alimentar, sentada na poltrona, cercada por amigos e familiares, recebendo visitas na sala. Ao redor dela estavam Ítalo, com palavras de despedida disfarçadas, e Roch, que, com seus anacronismos, mantinha o comportamento brincalhão de sempre. Nesse meio tempo, por meio da articulação de Talita, o  companheiro dela, partido de S. Paulo, estava indo buscá-la para o seu desencarne naquele estado alguns dias depois.


domingo, 22 de junho de 2025

 .A hora que Talita chegar

                  

                   Os priminhos de Talita eram os únicos que se preocupavam com como seria quando ela chegasse, enquanto o casal vinte se embriagava de primavera ao som da música tocada na vitrola do tempo.

                    Uma maiorzinha até que tentava explicar para as outras, que Selmas, mal comparando, só estaria jogando para assegurar Ítalo de outras.

                   Mas diante dos dois passeando para lá e para cá no maior relaxo, passou-se a outra conversa que resultou num abalo. Ítalo descobria que Selmas ora aparecia para frente, ora aparecia borocoxô:

                   - Que foi?

                   - Você é namorado de minha irmã, vá ficar com ela.

                   - Minha namorada é você, Selmas. Talita está noutra.

                   - Não, não é direito. Você pode fazer o favor,,,– disse quase que num soluço.

                   - A prova é tanta, Ítalo, que você nem mais usa a aliança.

                   Só então percebeu que a aliança não estava lá. Ao notar esse descuido, interrompeu o afago e recolheu a mão. E não fazia diferença apresentar argumentos. Era preciso deixar o silêncio prevalecer por mais algum tempo. E assim prosseguiriam até que, superada essa crise, eles encontrariam outra onda, outra sincronia. Aprendia também a se guiar apesar das adversidades.

                   Notara a meninada que nada mudou com a chegada de Talita, pois Ítalo e Selmas permaneciam noivos, de forma civilizada, inclusive combinando de ir a uma festa juntos.

                   Mas Ítalo ficou um tanto animado com a combinação de semelhanças entre as duas, que se diferenciavam pelos cabelos: lisos, da irmã mais velha, e anelados, de Talita. E nessa mistura de imagens, Ítalo, alterado pela bebida, mergulhava, por vezes, nos anelos de Talita, que o empurrava para lá:

                   - Vai ficar com ela, vai, sua namorada é ela.

                   E ele não podia afirmar nem negar se era do mesmo encanto, porém os três voltavam para casa abraçados após a noite de celebrações, malgrado a desfaçatez do tempo.

                  E seguiam nesse ritmo até que anunciaram a mudança permanente de Talita para S. Paulo, para acabar dessa forma com uma iniciativa de triamor em um relacionamento que despontava.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

 

Selmas II

 

                        Soube depois que a família havia mandado para S. Paulo a menina Talita. Diziam que para não namorar Ítalo.  Por isso que o tempo parou de escoar ali na cidade, pensava ele enquanto olhava o movimento lerdo dos carros na rua principal, até que no momento passou um caminhão e de onde estava Ítalo gritou no estalo:

                   - Hanrrum! Vocês viram o que eu vi? Talita na boleia do caminhão!

                   O dono do barzinho abriu a boca informando que não era Talita, que essa estava em São Paulo com uns tios.

                   - Oxe, e quem é?

                   - É Selmas, a irmã dela, a mais velha.

                   - É a cópia fiel de Talita - disse Ítalo. Depois, arrematou sorrindo: - É minha: eu vou ficar com ela.

                  - Ih, pega leve, cara: é minha prima – barrou Ivo.

                   - É bom que você vai ser o meu pombo correio e vai dizer a ela que estou na área, que quero namorar.

                   De dentro de Ítalo bateu uma certeza: ele iria estar a serviço de vigilância daquela menina, proteção e participação em todos os seus atos.  Não podia sair por aí, sem anuência dele não. O pombo correio iria entrar em ação. E não tardou, no dia seguinte ele chegou de retorno. Movia a cabeça negativamente quando perguntado na tampa:

                   - E aí, Ivo?

                   Ivo não viu a uva como na escolinha, mas a distância da prima para Ítalo. Ela, professora primária, com uma turma de alunos já arranjada pelo município; e Ítalo, estudante, sem completar seus estudos, tendo ainda que prestar vestibular. Ivo respondeu como se fosse jogar água fria na fervura:

                   - Ela disse que quer casar.

                   Foi o mesmo que dizer: “Sai fora, cara. Não é pra você não.” Mas o garoto se manteve firme, não se deu por vencido, e causou espanto ao dizer de imediato:

                   - Pois diga a ela que, coincidência, eu também quero.

                  Naquela noite, eles se encontraram na pracinha para tomar uma coca-cola e esclarecer a situação. Viu de perto a irmã de Talita e a achou tão bonita quanto a outra, ora uma mais que a outra, em sistema de revezamento.

                   - Ué, menino, você respondeu por Ivo que quer casar. Você é um menino ainda.

                   - Vou fazer dezoito no final do ano. E pare com essa coisa de me chamar de menino.

                   Para se comportar assim, decerto que ela o estaria confundindo com um de seus alunos. Só podia. Naquela manhã, ele a seguira e ficara encantado ao vê-la de braços dados com um grupo de crianças voltando do recreio, chupando picolé.

                   - Peço desculpas – ela disse.

                   Ítalo, mudando de assunto, contou umas histórias. Mas viu que só ele falava, então resolveu dar por encerrado o papo, no que ela se manifestou:

                   -Vai, por que parou? Conte mais.

                   Ele já estava até aborrecido com a beleza de uma estampa de moça ali de frente, só tratando-o por menino, como se ela fosse adulta de tamanho ideal e ele como um mero aluno, nada levado a sério.

                   - Deseja ouvir mais ? Se você gosta tanto, compre um livro de histórias – disse, e só não se retirou porque seria mais feio.

                   E ela sentiu a bordoada, o que era suficiente para Ítalo. Em seguida, resolveu a situação com um beijo de despedida e a renovação da promessa de um encontro. Considerou a partida desafiadora, com algumas caneladas e erros de arbitragem, mas saiu vitorioso com um placar magro de um a zero.

                  O tempo voltava a escoar e então logo a cidade era pequena para caber a alegria do mais novo casal de namorados.

                   - Esses meninos, tem que pegar eles e casar – ouvia-se diante da pegação dos dois.

                   Porém, esse era apenas um plano para eles. Não se estava tratando disso na ocasião, mas havia algumas provocações do lado de Selmas. Essa forma de agir resultou na ideia das alianças de noivado, que Ítalo não conseguiu mais adiar. E não custava nada, como de fato não custou.

                  

terça-feira, 17 de junho de 2025

 

Talita

                 

                   O tempo escoava, e o grito da mãe alcançava o portãozinho de ferro da casa, tantas vezes tocado (raooplá) por eles nas noites silenciosas e nos momentos de despedida:

                   - Talita!

                   E ela, aconchegada nos braços dele, despedia-se com um beijo breve e partia apressada, obedecendo ao comando materno.

                   - Estou indo, mãe.

                   Na verdade, não era mãe, mas avó com quem ela passou a morar desde muito cedo, quando se refugiou lá, aterrorizada pela promessa de palmadas da mãe. Como encontrasse o mesmo habitat, acabaria sendo criada pelos velhos.

                  Ítalo e Talita eram colegas desde o abecê, cartilha e ginasial, e ele não compreendia muito bem por que ela morava com os avós, mas aceitava essa ideia, especialmente porque ela se tornava sua vizinha, de até, num fim da tarde, quando terminava a brincadeira, poder ser vista tomando banho no quintal.

                   Menina talentosa, admirada por todos nas aulas, apresentações, cantigas de roda e outras atividades esportivas. Entretanto, um clima de namoro começou a surgir na fase ginasial, quando um misto de ternura e lembranças emergiu durante as primeiras férias de Ítalo. Fora um flerte num dedo de prosa apenas. Estavam, por ocasião da chegada do garoto Ítalo, na biblioteca da cidade.

                   Mas à noite houve um tradicional namorico no banco da pracinha, cujo assento foi enxugado dos respingos da chuva por uma coleguinha de casa próxima. Esse encontro motivou uma correspondência regular por aquela temporada. Carta com os primeiros sonetos falando do amor platônico, que não prosseguiria devido a uma intempérie de circunstância. 

                    Quando Ítalo voltou no semestre seguinte, já era outra temporada. E a página foi virada completamente. Ao receber Talita para matar a saudade, avistou à frente um grupo de antigos colegas seus carregando Rock, embriagado, para casa.

                   - Por que será que ele bebeu tanto assim?- Ítalo espantou-se na hora, pois a ficha ainda não tinha caído.

                  Ninguém para falar. Durante a ausência de Ítalo, todos os colegas de turma, amigos do titular e de Rock, demonstraram solidariedade e compreensão em relação ao flerte secreto entre Rock e Talita.

 

 

 

           

 

 

           

 

 

 

sábado, 7 de junho de 2025

 

Joelma

 

Ele ia à cidade vizinha para fazer compras (uma revista e um disco novo). Em uma dessas viagens, ele acabou conhecendo uma garota de seu interesse.  Com cabelo preto e franja realçando os olhos grandes e vivazes, ela aprendia a prática do comércio como mocinha na companhia do pai.

Comprou umas revistinhas de fantasma e Zé Carioca. Passou numa loja de discos para olhar alguns títulos e no final adquirir um compacto da cantora Joelma, mais pela foto de capa que propriamente pelas canções românticas (só pra mim) ali anunciadas.  Aí, era passar na sorveteria e ficar no ponto de volta esperando seu pai. Tinha nada que estar às voltas com tecidos e confecções. Mas, quando deu por fé, estava dentro de uma loja, admirando a balconista.

Achou um encanto a garota. Por isso valia a pena gastar um tempinho vendo ali os movimentos de uma aprendiz, que, a rigor,  mais demonstrava ser uma veterana. De tanto assim permanecer, acabaria tendo que comprar uma blusa na mão do proprietário como justificativa.

- Só olhando, por enquanto – falou no estalo.

- Fique à vontade, moço – disse o comerciante.

Não podia mais perder tempo; precisava afastar-se, pois não ia comprar nada e, como um possível bandido sequestrador, já tinha observado bem a garota.  Ele até conhecia o perfume que ela usava. Talvez devido ao fluxo de pessoas na praça e ao seu comportamento de farejar o local como um lobo mal-intencionado, pensassem em figuras desse tipo. A garota invocava.

De tanto que ficou apreciando e embaralhando-se por entre peças de panos   e confecções  para não ter que se justificar de novo, que passou a gostar do cheiro, de forma tal que foi ficando.  E a imaginação rompia todos os obstáculos, derrubando muros e abrindo espaços para caber a largueza dos instantes de intimidades que teria com ela.

- O moço vai levar a blusa? – quis saber o dono da loja.

No susto, Ítalo somou, de cabeça, o troco que trazia na carteira com mais uma nota alta escondida  no bolso interno da calça para alguma emergência,  e falou nervoso:

- Vou.

         Quem saiu para comprar uns gibis e um disco de sucesso era agora obrigado a se desprender de uma cédula que carregava de reserva para uma emergência.

         - Volte sempre! – escutou da garota veterana à saída.