domingo, 25 de junho de 2023

Um beijo para Pequenininha ou o roubo de cena de O Titanic

 


 Em meio ao vistoso aglomerado de jovens, destacava-se uma morena, cabelos encaxeados, dentro do padrão de normalidade, tamanho P.  Era também uma das aprovadas no concurso público do magistério. Colega de Edu, que, ao vislumbrar a garotinha, logo se deixou escapar com entusiasmo:

- Pequenininha bonita, cara!

Pronto, era para ficar apenas por aí, não fosse a força e o orgulho que gozava a turma considerada de elite do Estado.  

- Sofri feito o cão, mas passei – desabafou um maduro e manco professor de sotaque nordestino.

- De quem é esse cordel? – Edu perguntou ao ver a folhetagem que então circulava pelo prédio da universidade, que sediava o evento de treinamento de concursados.

- De Chico Leite, da turma de Educação Física – respondeu o claudicante  professor,

Edu conhecia esse esquema desde a época da Ditadura. Aproveitava-se a aglomeração e soltava os versos, como menestrel. Mas ali, já relaxados, os candidatos aprovados se dividiam em turmas. Nesse clima, ele entrava e ia-se infiltrando com facilidade. Podiam vir com montanhas de problemas, que Edu fazia e acontecia com pose de quem, ao tempo, chupava laranja ou mascava chiclete. Assim, não encontrou dificuldade em conseguir figurar como membro da equipe de uma Pequenininha, de gostos concatenados.

- Proteção? – gritou algum observador.

- Recíproca proteção intelectual – disse Edu, encostando sua carteira com um sorriso. – Boto fé nessa rapaziada – arrematou.

Apresentações realizadas, iriam discutir o arcadismo com Edu no papel de Dirceu e Pequenininha no de Marília, numa livre adaptação da peça que parodiava O Titanic, filme que estava em cartaz. Isso tudo na base de improvisação e correria. Terminada de escrever uma peça, a várias mãos, parte do trabalho, montaram-na, sob orientação de uma das integrantes, que posava de diretora teatral, autorizada por ter assistido ao filme umas três vezes.

Edu, que estava encantado com a atriz, mais encantado ficou na hora de declamar para Marília encima da mesa da sala improvisada de navio, quando foi derrubado ao chão por provocação da diretora:

- Você tem que cair, Dirceu!

E aí que a cena se tornou encoberto de magia, com final em aplauso, parecendo extensivo aos versos bem articulados por Edu:

             Eu, Marília, não sou algum vaqueiro

             Que viva de guardar alheio gado...

 Nessa hora estendia os braços nos de Pequenininha e sentia-se  como Tomás Antônio Gonzaga, poeta quarentão, com Marília nos seus 15 anos. Viagem no tempo! – pensou. Mas quando foi sacudido para cair, com o balanço do navio, viu transformar-se em Jack ao lado de Rose, do filme.

À noite, haveria uma confraternização dos concursados no hotel em que Edu estava hospedado. Pequenininha e suas companheiras não compareceriam, por isso tivera que, num gasto de papo com karaokê, reservar-se para o dia seguinte, quando haveria de se despedir não com o costumeiro beijinho mas com os arroubos ditados pelo fogo maduro da idade.

A turminha, como torcida, esperava a despedida do casal, com gran finale. Valeu mesmo, porque o que se verificou foi um beijo de nunca mais “a gente vai se ver”, a la Jack e Rose, para encerrar aquele momento com chave de ouro.

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