Camisa do Flamengo não
A mulher veio se queixar que hoje em dia já não se
faz mais empregada como antigamente, que essas mocinhas não sabem arrumar casa,
cozinhar - principalmente cozinhar -, nem cuidar de menino, etc e tal. Um
verdadeiro discurso. Isso feito uma cantilena - uma cigarra todos os dias nos
ouvidos, quando em casa chegava e a encontrava recolhendo a roupa enxuta do
varal ou correndo até a cozinha para espiar a panela no fogo ou ainda vindo até
a sala ralhar com os meninos e verificar se eles faziam a tarefa ou assistiam à
televisão.
O diabo que empregada ali não durava mais que um
mês: “Não serve. Você viu a sujeira em que se encontra a vidraça? As plantas
morrendo de sede, a minha panela que não pode ser areada com bombril! Você viu?”
Vinha outra. Desta vez uma senhora. Tinha mais
experiência, mais juízo (“da idade de mãe”), podia dar certo.
Não deu:
- Eu ainda acabo com meus dias de vida. Olhe o que
essa tonta fez!
Por ele, ele até que perdoava. A velha não conhecia
essas modernidades - achou que o salame tipo italiano fosse como lingüiça
caseira e tascou tudo no feijão, gordureiro sem fim, que teve que fazer farofa
de ovo se não quisesse ficar com fome e agradecer encontrar-se a meninada na
casa da avó nesse dia.
Deletada a velha, apareceu depois o contrário: uma
nova. Nem bonita nem feia. No frescor da idade, como diria Machado de Assis.
Mas aí, mesmo antes de ser testada no emprego, quem ficou para os cantos
dizendo coisas foi ele:
- Essa menina não vai dar certo aqui não. Pode
mandar embora.
- Você é doido, é? Imagine! Logo agora que achei
uma menina prendada, caprichosa, que sabe fazer as coisas! Pois dessa aí eu
gostei.
- Pois eu não gostei nem um pingo. Se a gente
entra na cozinha, essa menina com essa camisa do Flamengo. Se entra na sala,
camisa do Flamengo. No quintal, camisa do Flamengo. Quieta, pelo amor de Deu.
- Tá certo que você é botafoguense doente, mas
eu é que não vou perder uma empregada dessa só por causa de besteira de
futebol. Nem pensar, nem pensar mesmo. Eu é que sei o que é ficar sem
empregada, me matando no tanque de lavar, na cozinha e tudo – e lá vinha de
novo a ladainha..
Ele, que sempre dizia ter dois times (um para amar
e outro para odiar), virou a página do jornal que estava lendo, meneou a cabeça
e, entre dentes, mordeu as palavras:
- Isso é demais: camisa do Flamengo em minha
casa. Vai que passa um amigo aí e a gozação está feita. De jeito nenhum.
A mulher não lhe deu mais ouvidos e saiu para as
compras.
Ficou observando no quintal a empregada regando as
plantas - a camisa do Flamengo para lá e para cá. Sem soutien; os seios
pontudos como frutas no ponto de colheita.
- Es-sa ca-mi-sa do Fla-men-go...
A essa altura, já não mais sabia em que trecho do
jornal interrompera a leitura.
Chegou até a pensar, com certa isenção, que a
camisa do Botafogo (é claro que não iria admitir isso perante os flamenguistas)
perdia de dez a zero.
Uma nesga do sol, em declínio, iluminava em
rubro-negro o tecido fino. Eram os seus olhos, em todo campo de visão, tomados
por aquelas duas pontas de seios.
Quando a mulher retornou para apanhar algum objeto
esquecido deparou com a cena: a menina segurando frouxamente a mangueira d’água
e ele lhe suspendendo a camisa, já em meio, seios à mostra, no ponto do...
“nhoque”, mas aí...
- CACHORRO! QUE HISTÓRIA É ESSA?
Então ele foi mordendo a blusa e puxando-a
bruscamente com as mãos. Não levou mais que um segundo, ela assistiu, um pouco
mais conformada, o restante da cena: ele retirando completamente a camisa que a
menina vestia, jogando-a no chão e pisoteando feito um doido:
- Eu já disse: camisa do Flamengo em minha casa
nem ver. Vou botar fogo. Aqui é BOTAFOGO. BOTAFOGO, minha filha! -
esbravejou e saiu para o quintal cumprindo suas palavras.
Tudo foi contornado, “graças a Deus”, e a menina
ganhou blusa mais decente, etc.
- Só acreditei mesmo porque o fanatismo dele
pelo Botafogo é coisa pra psiquiatra. Tirou com raiva, com os dentes e tudo e
tocou fogo na camisa - escutou as explicações dela aos familiares.
E ele, ajeitando as folhas do jornal:
- Tá, neném, imagine se eu vou deixar gente entrar em minha
casa com camisa do Flamengo!
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