sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

No. 02 PASSOS FIRMES




Com ânimo de ainda uma vez poder falar com Isis, mesmo sabendo isso inútil, por falta de conexão, Flávio costumava aparecer na Lanchonete do Russo. Trôpegos passos, tomava o caminho de casa em companhia de Telma. Nesse dia, em que estavam em paz, porém, tentava engatilhar uma conversa séria com a namorada:
_ Você não acha que estamos forçando a barra, sabendo que ela não se tornaria fácil assim? perguntou mais para si mesmo que propriamente para Telma.
_ Ela quis apenas, Flávio, que a gente procurasse viver a vida sem culpa de nada,  respondeu Telma.
_Claro, temos que entender bem o livre arbítrio; a vida nos oferece muitas delícias.
Telma ergueu-se da cadeira como se fosse tomar alguma providência e gritou para Russo:
_ Falar nisso, cerveja aqui na mesa, Russo.
_ Você disse que ísis lhe deu um passe maravilhoso...
_ “Magistral”, para ser mais fiel ao que eu disse naquela ocasião, corrigiu. Você sabe que me referi a um passe de mestre, explicou Telma com beijinho.
_ A grandiosidade que é a vida, para ficar-se preso a essas coisas tão miúdas e vazias, sem importância!... Eliminei muito no meu modo de agir, depois daquele papo com Ísis.
- Comportamento meio altruístico.
Sentou-se mais próximo de Flavio, como se concordasse com ele nesse ponto, para tomar cerveja num brinde, copo erguido em choque com outro copo, olhos nos olhos e um sorriso solidário no meio, no que vislumbrou num lampejo a imagem de um instante de saudável permanência, selado com beijo.
_ Comportamento de quem ama, corrigiu Telma.
De repente a praça entrou em cena, com os jovens espalhados em clima de festividade, levando os dois a uma pegação, modo juvenil de se encontrar.
- Você me ama?
_ Pra lembrar Ísis, um dia você vai descobrir por você mesmo. Vamos num papo normal, enquanto tomamos uma.
A referência ao nome Ísis foi como uma lufada de satisfação para Flávio, que acabou estreitando Telma nos braços:
_ Você está pegando rápido as ideias dela, não é, gata?
Ela sacudiu seus cachinhos  de cabelo:
_ Sem segredos, vamos aos poucos penetrando a área. Não vamos fazer como Vera Ficher, que teve que chegar aos 68 anos para cair a ficha. 
_ Vera Ficher? Como  você sabe?
_ Ela declarou durante Baile da Vogue 2020, está aqui, e puxou no aparelho trecho da internet: ”Aprendi a ter alegria depois dos 68 anos. Antigamente eu era meio chatinha, ciumenta, possessiva, engatava briga, agora estou feliz, com muita sabedoria e quero só felicidade”.
_ Você, dias atrás! gritou no estalo Flavio.
_ Exatamente, confirmou Telma após bicar a cerveja. Ela me convenceu do que para Vera Ficher custou anos. Quebrou a cara, meteu-se até com drogas, para depois cair a ficha. Tudo besteira. E foi disso que a gente tratou naquele dia. Parar para olhar com certa isenção, dentro de uma amplitude do que é a vida, muito nhenhenhém atrasa a gente, gato. Não vê o caso aí de Vera  Ficher, que passou toda uma vida para por fim descobrir o quanto foi uma otária. Isso que Ísis me falou, e eu te perdoei dentro de mim, disse entre soluços, sorriso e abraços, simulando adormecer pensando em Ísis.
Passos firmes, Flávio não mais voltaria para casa abatido e desencantado. Telma não mais engataria briga. Enquanto caminhavam abraçados, respirou com a certeza do dever cumprido:  Ísis já estava dentro deles.


Verão de 2020.

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