Com ânimo de ainda uma vez
poder falar com Isis, mesmo sabendo isso inútil, por falta de conexão, Flávio
costumava aparecer na Lanchonete do Russo. Trôpegos passos, tomava o caminho de
casa em companhia de Telma. Nesse dia, em que estavam em paz, porém, tentava
engatilhar uma conversa séria com a namorada:
_ Você não acha que estamos
forçando a barra, sabendo que ela não se tornaria fácil assim? perguntou mais
para si mesmo que propriamente para Telma.
_ Ela quis apenas, Flávio, que
a gente procurasse viver a vida sem culpa de nada, respondeu Telma.
_Claro, temos que entender bem
o livre arbítrio; a vida nos oferece muitas delícias.
Telma ergueu-se da cadeira
como se fosse tomar alguma providência e gritou para Russo:
_ Falar nisso, cerveja aqui na
mesa, Russo.
_ Você disse que ísis lhe deu
um passe maravilhoso...
_ “Magistral”, para ser mais
fiel ao que eu disse naquela ocasião, corrigiu. Você sabe que me referi a
um passe de mestre, explicou Telma com beijinho.
_ A grandiosidade que é a
vida, para ficar-se preso a essas coisas tão miúdas e vazias, sem
importância!... Eliminei muito no meu modo de agir, depois daquele papo com
Ísis.
- Comportamento meio
altruístico.
Sentou-se mais próximo de
Flavio, como se concordasse com ele nesse ponto, para tomar cerveja num brinde,
copo erguido em choque com outro copo, olhos nos olhos e um sorriso solidário
no meio, no que vislumbrou num lampejo a imagem de um instante de saudável
permanência, selado com beijo.
_ Comportamento de quem ama, corrigiu
Telma.
De repente a praça entrou em
cena, com os jovens espalhados em clima de festividade, levando os dois a uma
pegação, modo juvenil de se encontrar.
- Você me ama?
_ Pra lembrar Ísis, um dia
você vai descobrir por você mesmo. Vamos num papo normal, enquanto tomamos uma.
A referência ao nome Ísis foi
como uma lufada de satisfação para Flávio, que acabou estreitando Telma nos
braços:
_ Você está pegando rápido as
ideias dela, não é, gata?
Ela sacudiu seus
cachinhos de cabelo:
_ Sem segredos, vamos aos
poucos penetrando a área. Não vamos fazer como Vera Ficher, que teve que chegar
aos 68 anos para cair a ficha.
_ Vera Ficher? Como você sabe?
_ Ela declarou durante Baile
da Vogue 2020, está aqui, e puxou no aparelho trecho da internet: ”Aprendi a ter alegria depois dos 68 anos.
Antigamente eu era meio chatinha, ciumenta, possessiva, engatava briga, agora
estou feliz, com muita sabedoria e quero só felicidade”.
_ Você, dias atrás! gritou no
estalo Flavio.
_ Exatamente, confirmou Telma
após bicar a cerveja. Ela me convenceu do que para Vera Ficher custou anos.
Quebrou a cara, meteu-se até com drogas, para depois cair a ficha. Tudo
besteira. E foi disso que a gente tratou naquele dia. Parar para olhar com
certa isenção, dentro de uma amplitude do que é a vida, muito nhenhenhém atrasa
a gente, gato. Não vê o caso aí de Vera
Ficher, que passou toda uma vida para por fim descobrir o quanto foi uma
otária. Isso que Ísis me falou, e eu te perdoei dentro de mim, disse entre
soluços, sorriso e abraços, simulando adormecer pensando em Ísis.
Passos firmes, Flávio não mais
voltaria para casa abatido e desencantado. Telma não mais engataria briga.
Enquanto caminhavam abraçados, respirou com a certeza do dever cumprido: Ísis já estava dentro deles.
Verão
de 2020.
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