Marilene
LOGLINE: Ponto de virada estudantil de um garoto vindo do interior.
Eu despertei para os estudos e dei um salto a partir da 8ª série, quando passei a me inspirar nos seus passos de aluna exemplar. Ainda que de uma virada sob os auspícios de uma segunda época. Acabei por estrear no primeiro ano colegial com um dez em português, a ponto de sentir de moral elevada com a aproximação de algumas colegas:
- Ítalo, você pode me emprestar sua prova que eu fiquei para recuperação?
- Gente, vamos deixar à escolha do aluno Ítalo o livro da unidade Realismo/Naturalismo – era a voz da professora de Língua Portuguesa.
- Ítalo, você escolhe para a sua turma que livro: O Cortiço ou O Mulato, de Aloísio de Azevedo? - apontava para mim.
A homenagem feita pela professora acabou sendo marcante na vida do aluno, passados os primeiros sustos. Porém o que mais me agradava era estar no rol dos superiores em nota. Ao lado de Marilene. Grudado em Marilene, nas notas, no esporte, na música, nas ciências e nas artes. Comecei bem com a nota. Na música, lembrei que, se ela tocava guitarra, eu era um iniciante em violão; no esporte só conhecia o futsal, mas tinha noções de vôlei e basquete. Para enturmar-me carregaria o colega Paulo a tiracolo, que era do seu Estado de São Paulo, do mesmo quilate dela no domínio desses conhecimentos, inclusive na dança de apresentação teatral, longe dos meus passos, de um Ítalo sem passar por uma primeira comunhão.
As meninas internas – naquele uniforme de calça marrom, camisa branca de gola polo e tênis (”só encontrável nas lojas Leão de Ouro”), eram decentes. Além de decentes, prendadas e bonitas. Que mais! Com direito a pose, mas sem se importarem com o exercício desse direito – ausência que antes de qualquer coisa dava nelas mais encanto. Tocavam guitarra, dançavam balé. Quem se entrosava com elas fazendo número de dança no teatro, que ficava no térreo do prédio, como figurante, nos eventos culturais, era Paulo - uma maneira de a gente também estar próximo delas e poder sonhar. Como só havia três meninos na turma, Paulo tinha que ser colega chegado. E viva Paulo, que dava notícia delas para gente. Foi uma espécie de Vasco da Gama, navegante português, nessa nossa história. Do tipo assim: que elas eram órfãs, de outro Estado, de Sergipe ou Pernambuco, uma delas até era sobrinha de irmã Catarina, nossa Orientadora Educacional do SOE. Nada mais que isso sabíamos.
Minha jangada vai sair pro mar
. Ela, a preferida, de nome humilde, Marilene Andrade, era branca dos cabelos negros, de róseo rosto, com pontinhas ligeiramente perceptíveis de espinhas. Leve, numa magreza normal de colegial bem cuidada, o que podia ser notado facilmente na hora de dar a saída de bola no jogo de vôlei. Com estilo, no short marrom, desenhando um bronzeado normal, ia para o saque. Erguia-se e levantava com classe de bailarina a bola para a colega fazer belas cortadas e acrescentar pontos no placar. Depois, nos saltos de contentamento, caminhava de volta para o saque ao fundo da quadra. Gingado clássico. Sempre. E a gente na torcida curtindo, enquanto aguardava a vez de enfrentar o time vencedor, no quem ganhar chama.
Eu olhava para aquele instante, embevecido com novidades e descobertas. Mas a gente tinha mais era que ficar assim, na torcida, sem pisar a sério o chão da realidade, naqueles anos de 1976/1977, para que tudo não se conduzisse de forma inexorável, uma manhã sucedendo a outra, no mesmo cheiro matinal de café com leite e pão francês com manteiga, vindo do refeitório. Melhor que ficássemos pelo resto de vida só acompanhando o jogo: o saque de Marilene, a cortada de sua colega, cujo nome me foge, mas não me foge o contrabaixo que ela tocava legal com Marilene. Elas tocavam brincando, sem fazer qualquer esforço. Sentavam juntas, andavam juntas afinal. Era mais forte, como se fosse irmã mais velha, mas de mesma jovialidade estampada. De entendimento comum, suas notas eram as mesmas, acima de oito, nove, geralmente dez. Variavam de forma imperceptível.
A sobrinha de irmã Catarina, Glauce, que não tocava nenhum instrumento, foi quem chegou a nos dar ousadia, mas era do tipo sem segredos nem encantos. Minha câmera invisível parecia filmar o movimento delas pela manhã, desde a fila que se formava para cantar o Hino Nacional - obrigatório - até o acesso às salas de aula, no primeiro andar. Vez por outra, o acesso era para entrar em fila no teatro do colégio, aberto para alguma apresentação ocasional ou periodicamente para fazer a avaliação da unidade, através de uma espécie de vestibular simulado. Minha câmera invisível acompanhava nesse dia um evento cultural, em que as meninas tocavam violão e um coral levava uma canção de Dorival Cayme, um drama do pescador em Suíte de Pescador:
Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer
Adeus, adeus
Pescador não esqueça de mim
Vou rezar pra ter bom tempo, meu nêgo
Pra não ter tempo ruim
Vou fazer sua caminha macia
Perfumada com alecrim
Não precisa dizer que o adolescente, vindo do interior, viu ali o máximo de apresentação artística e carregaria por toda vida aquela dor: a mulher do pescador, que vinha até a beira do palco para entoar o adeus, adeus, e os “pescadores” (meia dúzia de garotas bailarinas) indo até a outra margem do palco. Antes desse número, houve uma apresentação de um sapateado com Paulo (filho de português) e uma garota de outra turma, que era espanhola.
- Isabela toca violoncelo - diria Paulo depois.
Só que dizíamos que era namorada de Paulo, tanto era nosso o desejo adolescente na garota. Confesso aqui uma traição: mal tivemos essa prosa, Paulo acabou se apaixonando pela espanhola e, por tabela, todos nós mergulhamos também nessa penumbra da paixão. Aí, Paulo me encarregou de fazer uma carta para a garota Isabella, em que pude derramar todo meu amor por... Marilene (cuja conduta exemplar me influenciaria dali para frente).
Aconteceu de eu ter de fingir de paixão pela espanhola e escrever essa carta para a Isabella por encomenda de Paulo, que era um pouco mais amadurecido, e ia cortando os excessos dos meus arroubos juvenis ao passar a limpo o texto.
Creio que foi assim, sob esse amor platônico e uma sacudida de realidades, que iniciamos aquele ano letivo de 76, que vinha pichado Abaixo a Ditadura no muro de esquina para rua de acesso às avenidas de vales do colégio recém pintado.
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